A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Episódio 3
9 horas e 13 minutos
A Mãe desce para começar a trabalhar, passando novamente pela cozinha onde prepara uma garrafa grande de chá verde com mel. Organizou o seu posto de trabalho no quarto da Filha, para deixar o escritório livre para o Pai. A Filha não vive em casa agora, vive em casa dos avós, em Lisboa, onde está a fazer o seu estágio profissional depois de ter concluído a licenciatura. Já não se veem há dois meses. Estando a trabalhar sentada na secretária dela, entre a sua cama e a sua estante de livros, a Mãe sente-se um pouco mais reconfortada. A Filha fez anos no domingo e a Mãe combinou com a Avó fazerem ambas um bolo de aniversário igual, com chantili e morangos, o favorito dela, para comerem ao mesmo tempo. Organizaram uma reunião virtual com a família e os amigos e houve um bonito coro na altura de cantar os parabéns. Depois partiram o bolo, cada uma do seu lado do monitor e levaram em simultâneo o garfo à boca, como se estivessem realmente a partilhá-lo. À noite conversaram ao telefone até o relógio marcar 00h00m, cantaram músicas dos filmes da Disney e disseram disparates que as fizeram rir, esforçando-se por espantar as amarguras. Só depois do dia acabar se despediram.
A Mãe recorda esse que foi o primeiro aniversário que passou longe da Filha e sente uma lágrima grossa aflorar-lhe às pestanas. Tem muitas saudades dela. Tantas, que doem no estômago e fazem tremer os dedos a bater nas teclas. Tantas, que lhe custa respirar fundo, que lhe custa sorrir ou rir porque não ouve riso dela. Tantas, que deixou de cantar de na cozinha porque lhe falta a Filha no dueto. Tantas, que dorme com o pijama dela vestido para a sentir mais próxima. Tantas, que se reinventa todos os dias antes de lhe telefonar para que ela não perceba a tristeza na sua voz. Desde que a Filha saiu de casa, e até agora, guardavam a certeza de que a outra estava ali, à distância de uma viagem de três horas de comboio. Nunca imaginaram que essa viagem lhes podia ser vedada. De todas as saudades
que tem, a maior é a de rirem juntas, até às lágrimas.
Uma destas noites a Filha adoeceu e foi preciso levá-la ao serviço de urgência do hospital. Foi o Tio, que mora no andar de cima, que a levou. Foram de madrugada, para evitar as horas de mais afluência. A Mãe só soube no final da manhã, quando eles acordaram depois de descansar, já em casa, dessa noite em claro. O Tio é irmão da Mãe, não tem filhos e toma conta dos sobrinhos, desde pequeninos, como se também fossem seus. A Mãe sente-se descansada sabendo que ele está perto para ajudar em qualquer situação, mas, apesar disso, pesa-lhe a impotência de não ter sido ela própria a acompanhá-la.
São tempos difíceis estes, para as famílias separadas. A Mãe tem andado a adiar a viagem a Lisboa e não é apenas pelo receio de comprometer a saúde e segurança de uns e outros. A verdade é que, apesar das saudades desmedidas que sente, assusta-a o momento do reencontro. O pai dela é um doente crónico em imunossupressão, pertencente ao grupo de risco mais elevado e, por esse motivo, ela sabe não pode chegar-se a ele, nem às outras pessoas que coabitam com ele. Não poderá ficar para passar o fim-de-semana, não poderá sequer entrar em casa deles. Passará apenas algumas horas no jardim e regressar, com as saudades pouco apaziguadas.
A antevisão desse cenário aterroriza-a. Receia não encontrar a força necessária para não sucumbir à frustração, à tristeza, ao desalento, de não se poder aproximar, de não os poder abraçar.
Liga o rádio e prime o botão do computador. Num impulso pouco racional e sabendo de antemão que se vai magoar, abre o Google Earth e digita a morada da casa dos pais, a 317km de distância. Com os olhos fixos no monitor, percorre as ruas da sua infância e, com a visão toldada por uma cortina de lágrimas, vê o carro deles estacionado à porta.
Arrasta a cadeira com barulho e ralha com o Gato que está a caminhar por cima do teclado, pega nele e põe-no em cima da cama. Ele afasta-se e vai esticar-se onde bate o sol, gozando de um dos poucos aspetos positivos deste confinamento imposto, que é obrigar a família a permanecer em casa com ele.
No quarto ao lado, o que tem a parede preta, o Filho enrola-se na cama e resmunga. Olha para as horas no telemóvel e conclui que ainda podia dormir mais dezassete minutos. Puxa o edredão para cima da cabeça, desejando que a mãe não fosse tão barulhenta.
Recordo-me de quando pintaram a parede de preto. Não foi ele, foi a irmã, em plena adolescência e com pretensões a uma fase “gótica” da qual agora certamente se envergonha um pouco. Quando ela se fartou da parede preta combinaram trocar de quarto e andaram dias a esmurrar-me as paredes, arrastando móveis e outras tralhas de um lado para o outro.
Nessa altura, era outro gato que vivia cá em casa. Era um gato mais velho e que não gostava muito de conversar, nem comigo, nem com os humanos.
Há semanas que a faculdade está fechada e as aulas agora ocorrem apenas por videoconferência, complementadas pelo material que os professores disponibilizam nas plataformas informáticas. O Filho termina a licenciatura este verão e esta situação preocupa toda a família. Ninguém sabe ao certo como vai ser concluído o ano letivo e acabar o curso sem uma única aula presencial no último semestre é uma situação nunca antes vista. As notícias que chegam, esparsas, da secretaria, são pouco conclusivas e vão-se alterando com o passar dos dias. São tempos de mudanças constantes e incertezas diárias.
O Filho foi o primeiro a ficar em casa pois houve um caso de uma colega infetada no
edifício em que ele fazia a pesquisa para o estágio. Teve indicação para permanecer vigilante durante duas semanas e contactar a linha de apoio da saúde caso se viessem a manifestar alguns sintomas. Ao décimo primeiro dia começou a ter uma tosse persistente e a Mãe, conforme lhes fora indicado, tentou ligar para o número de telefone de apoio (no início, quando os primeiros casos de pessoas infetadas foram detetados no nosso país, a linha estava de tal forma sobrecarregada que era preciso passar horas com o telefone em alta voz esperando vez). Decorridos três dias foram finalmente atendidos e foram-lhe indicados os procedimentos a seguir, caso se mantivessem os sintomas ou na eventualidade de se agravarem. Fizeram também um breve inquérito sobre a situação de saúde e trabalho dos restantes membros da família e, para surpresa, recomendaram que também o Pai permanecesse em isolamento profilático durante 14 dias, uma vez que é professor num dos concelhos com maior número de infetados e esteve na escola até à semana anterior.
Os dias de isolamento profilático já terminaram e nem Pai, nem Filho, vieram a revelar outros sintomas. A Mãe voltou a partilhar o quarto com o Pai e deixaram de limpar regularmente todas as superfícies de contacto com uma solução de lixívia diluída em água.
Não deixo de achar curioso como os humanos adquirem rapidamente novos hábitos e novas expressões. Palavras como higienização, confinamento obrigatório, isolamento profilático, distanciamento social, passaram a fazer parte do léxico diário das pessoas. Em menos de nada, em vez de vestidos ou sandálias, trocam impressões sobre a qualidade e conforto das máscaras, comparam soluções alcoólicas, soluções de lixivia e partilham receitas para fazer gel desinfetante em casa.
10 horas e 15 minutos
O Pai entra em casa fazendo tilintar o espanta-espíritos pendurado atrás da porta. A Mãe automaticamente pensa se ele já terá tirado as sapatilhas e se estará a ter cuidado de não tocar em nada antes de lavar as mãos. Também ele troca de calçado no hall sem reparar na caixa de cartão encostada a um canto.
Passado pouco tempo bate levemente à porta do quarto.
- Entra - responde a Mãe lá de dentro e volta-se para trás, sorrindo - como correu a tua corrida? Quantos quilómetros foram? - e passam alguns minutos comparando tempos, distâncias e dores musculares. Este é outro aspeto positivo, o tempo que deixaram de despender em filas de trânsito pode ser empregue em atividades saudáveis. Terminada a pequena competição, o pai passa ao assunto que o fez bater à porta. Quer saber o que é preciso ir buscar à mercearia.
A mercearia, no rés-do-cão do prédio da frente é uma verdadeira bênção nesta altura em que ir ao supermercado se tornou tão complicado. A dona colocou uma mesa à porta e as pessoas ficam do lado de fora, pedindo aquilo de que necessitam, lembrando o atendimento ao balcão, de antigamente. No interior, ela, de bata branca imaculada e viseira à frente da cara, apressa-se a ir de prateleira em prateleira, frigorifico, ou caixote, para trazer tudo o que os clientes vão pedindo. A pequena mercearia de bairro tornou-se um ponto de encontro importante: é ali que as vizinhas se encontram e que, em fila ordeira, vão trocando informações sobre a saúde e ânimo dos seus e de outros conhecidos. A merceeira vai juntando toda a informação e está assim apta a transmitir as notícias da terra a todos os que vêm buscar fruta ou leite. Pais encontram filhos à porta e aproveitam para atenuar saudades, sorrindo por trás das máscaras, enquanto desinfetam as mãos e guardam trocos. São rotinas que vão entrando nas vidas das famílias e em rituais que até há tão pouco tempo eram feitos à pressa, sem atenção, sem pensar e que adquiriram outra dimensão. Agora, uma ida à mercearia é muitas vezes o único momento de convívio, a oportunidade para trocar dois dedos de conversa, que ocorre durante a semana inteira. De súbito, a Mãe lembra-se que acabou o tomate e levanta-se para ir rapidamente à varanda. O Pai está na fila, a aguardar, pacientemente, metro e meio atrás da senhora à frente, com a máscara colocada sobre o rosto e o saco debaixo do braço. Ela assobia e ele olha para cima e pergunta:
- O que é que falta?
Ela responde:
- Tomate coração, grande e verde.
Ele faz um fixe levantado o polegar e ele volta para o seu computador. Faltam quinze minutos para começar a reunião de serviço por videoconferência.
Episódio 1
Episódio 2
A Casa, a Família e o Gato
UM CONTO DE QUARENTENA
Cláudia Quaresma
Fotos de Tiago Lourenço e de Cláudia Quaresma
@the.tiagolourencoph
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