O cinema deixou de apenas apontar feridas abertas – agora ele as expõe, pede atendimento urgente, grita por socorro explicitamente.
São dois filmes e os vimos em seguida – e é quase impossível respirar depois, acreditem. Filmes poloneses/polacos – outra coisa não tão comum. Mas com conteúdos contundentes, ambos apontam na cara do poder pra falarem de assédio – também não de qualquer assédio, mas o assédio praticado por padres. E também não apenas assédio e não apenas por padres, mas padres pedófilos. Um crime contra inocentes, em filmes que apontam culpados. Diretamente.
Portanto, filmes duros, duríssimos – ainda mais se entendermos finalmente que o mundo precisa enfrentar os dilemas advindos do poder e não silenciar mais diante do fato de que existem pessoas comuns e os “escolhidos” – aqueles que podem fazer tudo. Os que podem ser escondidos, camuflados, não apontados.
São muitas sensações reunidas em quase 4 horas, na soma dos dois filmes. Mas valem cada minuto. Ver, sentir a diferença de significado para o assédio do ponto de vista do assediador e do assediado – e é incrível como os assediadores, os pedófilos, falam como um acontecimento passado, enquanto o assediado fala sempre no presente. Enquanto para uns a ideia do pecado está em algum lugar da morte, do paraíso, de Deus, da benção, a dor, o choro, o trauma, a injustiça sufocada no espírito está lá bem visível nos hoje adultos assediados. E claro que a denúncia esbarra na parede impermeável dos bispos e no corporativismo da igreja, enquanto instituição. Tanto, que nem chegavam a ser discutidas antes do Papa Francisco. O bispo transferia o “tarado” e ele estava livre para recomeçar.
Há muito o que sofrer vendo o filme, mas temos que ver, que passar por isso. O mundo precisa aproveitar este vírus para se ver com maior clareza. E somos uma sociedade angustiada e egoísta, insegura de dizer o que quer porque não deseja compartilhar quase nada. Somos a fútil selfie do Face e o confinamento está nos dando a oportunidade de nos percebermos como somos. Precisamos nos olhar profunda e intimamente para podermos aprender a denunciar. Não pra sermos a manchete do dia, não depois de passados 2 anos, mas porque é nossa obrigação humana. Temos que usar máscaras porque precisamos prever o mal-estar do outro e não apenas esfregar os nossos mal-estares na cara do mundo.
Os filmes trarão profundo sofrimento. Violentam nosso espírito, sem terem nenhuma violência, nenhuma ação como a que estamos acostumados. Amo a câmera trêmula e a uso bastante nos nossos programas do Bug Latino. Estão vivas, sentindo a emoção, capturando a dor da vida. Pulsam, como nós. Os defeitos de áudio, as imperfeições, tudo isso são como cicatrizes pra mim – precisam existir.
No final você não será a mesma pessoa. Espero que, ao invés de se colocar aos gritos acusando os padres apenas, sobre um momento onde você coloque as mãos na consciência e veja como somos usados, como somos omissos, como temos muito o que melhorar como pessoas e como espíritos. Sem lavagem cerebral, sem mitos e sem mentiras. Quando os gritos calam, não há mais motivos pra mentir.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Vi os dois documentários. Aos poucos. Me impedia meu estômago, meus fantasmas, minhas recordações de infância e a constatação da vulnerabilidade que é a nossa vida nesse momento. Me impedia continuar a ver e a imaginar como alguns adultos constroem durante anos uma sólida confiança com as crianças e jovens para depois os destruírem para sempre. Parava, por saber o quanto acreditamos cegamente nos adultos nessas idades, se nos tratam bem, se nos dão de comer, se nos dão prendas e nos levam a lugares que sempre sonhamos ir. E, quando estamos no lugar da felicidade suprema, com os que confiamos totalmente, o mundo se torna estranho, confuso, misturado. Isto que está a acontecer não é errado? Mas é uma pessoa que amamos que o faz, que nos obriga, que nos magoa. Sabemos que as crianças consideram verdade o que dizem ou fazem os adultos que eles respeitam, admiram e amam. Imagine a confusão na cabeça destas crianças, imagine que não pode falar com ninguém sobre isso, imagine que se falar à sua família pode perder tudo – por pouco que tenha. Imagine isso dentro de você uma vida inteira guardado. Muitos acham que se guardarem bem, como fizeram desde pequenos, a vida segue. Só que tudo o que de menos bom nos aconteceu na vida, ou é falado, ou é escrito, ou é resolvido, ou vai sair de dentro de nós fisicamente, emocionalmente. Terá de sair um dia... E o que ainda é mais macabro é que a lei em quase todos os países prescreve ao fim de 30 anos. E é mais ou menos nesse momento que já é impossível esconder, que a dor não aguenta mais ficar guardada. A pessoa vai fugindo, se escondendo, dando desculpas, tentando ser alguém que deseja ser. Até não ser mais possível, porque mais tarde ou mais cedo, cada um de nós percebe que precisa viver de uma forma verdadeira, dentro de si. E quanto mais tempo “aguentamos”, mais violenta é a “saída” da dor.
Alguns depoimentos são de dilacerar o coração de qualquer um. Como é possível fazer coisas horríveis a crianças que viraram adultos sofridos e incompletos e se defender atrás da lei e da instituição onde se vive ou trabalha? Precisamos um dia repensar a forma de justiça e o uso da lei. Talvez um dos passos seja aprender MESMO desde pequenino o que é justiça, o que é lei, o que se deve fazer quando se erra, o que se deve fazer quando se sofre alguma injustiça. Talvez regular essas determinações. Porque hoje em dia os pequenos aprendem a ser “espertos” e a nunca ser “babacas”. Exatamente o contrário do que deveria ser. Aí, quem faz errado, vive na boa se sentindo “ousado e corajoso” em vez de se sentir arrependido e procurando minimizar o mal que provocou. E a sociedade concorda. Por outro lado, quem sofreu a injustiça, vira o desgraçado que nunca mais esquece o sucedido, que parou no tempo e que é teimoso e frustrado. Desequilibrado, fraco. Apenas porque não desiste de pedir ajuda, de tentar ser compreendido e de pedir justiça. A justiça é terrível. Você sofre e vive uma vida inteira de batalhas judiciais para provar que é verdade o que sofreu. Como se construísse um castelo de areia enorme na praia, alguém de confiança veio, destruiu o castelo com todos assistindo, mas você precisa de provar que o que aconteceu é legalmente e judicialmente verdade. E leva uma vida inteira tentando provar o que todos sabem e empurram “com a barriga”. Quem destruiu o castelo de areia, se junta com os que fazem o mesmo e exige ajuda nos que lhe devem favores. Cala a boca de todos e segue sua vida em “manada” protegida. Olá, século XXI!
Atualmente alguns estudos apontam números, percentagens muito altas de crianças molestadas – acima de 70%. Todos sabemos, nós os calados e cegos, que a maior parte das pessoas que sofreram abusos em criança, nunca falarão, o que aumenta muito mais esta percentagem e o problema. Sabe-se que estas situações marcam para sempre essas pessoas. Sabe-se que raramente os que cometeram os crimes serão punidos. Varrendo o lixo para debaixo do tapete, aguardamos que o lixo evapore. Mas ele só aumenta até o dia em que tropeçamos no tapete...
Eu pergunto: quando sabemos ou suspeitamos que algo não está bem, porque calamos? Porque nos sentamos na cadeira “não tenho nada com isso”? Pergunto: quando vemos que fazemos faz mal a crianças/jovens/pessoas, porque continuamos? Porque passado 30 anos, nos desculpamos com “foi sem querer”, “já passou”, “porque agora você vem com esse assunto”, “ainda não ultrapassou isso”? Tantas perguntas estão entaladas na garganta...
Acho que devemos assistir a estes documentários. Porque precisamos estar atentos à nossa volta. Porque podemos e devemos ajudar a impedir que estas coisas horríveis aconteçam. Estas e muitas outras. Mas isso fica para depois.
Ana Santos, professora, jornalista
NÃO DIGA A NINGUÉM (2019) https://www.youtube.com/watch?v=BrUvQ3W3nV4
ZABAWA W CHOWANEGO (2020) https://www.youtube.com/watch?v=T0ym5kPf3Vc
Nós temos que colocar muitos assuntos desagradáveis em discussão porque a ignorância nos destrói a todos. Não se evita falar de pedofilia. A gente ensina as crianças a reconhecerem-na e a denunciarem. Nós é que temos que ser interlocutores de mais confiança e denunciar os abusadores. SEMPRE.
O que mais eu poderia escrever aqui diante de tanta clareza e objetividade do que foi escrito neste comentário entre duas ilustres Professoras que admiro? Ana Ribeiro e Ana Santos. Somente parabenizá-las e assistir a indicação dos filmes.