Vimos MARIELLE, O DOCUMENTÁRIO da GLOBOPLAY e, a primeira coisa pra qual ouvi críticas, mas que assistindo, se justifica totalmente, é a história dela contar uma vida como a nossa, bem comum, com a ação presa à rotina, festinhas, depoimentos nada bombásticos. Gente, vida de brasileiro é assim mesmo. Eu nem pude ter festa de 15 anos e também não participei da minha colação de grau na faculdade porque não havia dinheiro pra festa. Se o filme fosse com a minha vida, o pedaço adolescência seria apenas uma recordação remota. Portanto, entendo o desenho biográfico que foi feito no roteiro. Não tem viagens espetaculares, aventuras e experiências incríveis, mas se contarmos pelo Brasil, quem teve? Quem tem?
Os depoimentos das viúvas de Marielle e Anderson relatando o dia do assassinato são dolorosíssimos e o passo a passo do último dia – não sei se por mérito do roteiro e da direção ou se porque conhecemos muito bem a história – é angustiante. Vemos o tempo passar, a hora do atentado se aproximar e sabemos que não vamos conseguir evitar o desfecho de nada. No meu caso, talvez seja um pouco pior porque sou carioca, minha família mora na Tijuca e vivo pegando o Metrô na Estação Estácio – pertinho da Joaquim Palhares, onde se deu o crime. Quase dá pra ouvir um tic tac interno.
Por último, vieram os cortes de Mônica Benício e o depoimento de Fernanda Chaves, assessora de Marielle Franco – fortíssimos. A intensidade da dor e a covardia inerente à natureza do crime, metralhando pessoas pelas costas e fugindo em 2, 3 segundos, tudo ali, exposto. A voz das duas se quebra em mil pedaços, a emoção alcança lugares profundos. A descrição é tão clara, tão orgânica que nossa emoção fica à mercê de uma situação que sabemos, foi planejadamente inevitável.
Do segundo episódio em diante, nos vemos diante de um labirinto onde reinam os criminosos profissionais do Brasil, com seu cinismo profissional também. A Globoplay mantém o mesmo nível de qualidade que conseguiu nas novelas porquê de um episódio pra outro, vc fica colado na tela, sem condições de optar por fazer outra coisa a não ser continuar assistindo. A apresentação das etapas da investigação, como aparecem pessoas que vão apenas desconfigurar o que o profissionalismo dos snipers não fez desaparecer, a política do Brasil, capitaneada pela política feita no Rio de Janeiro, o jeitão de “máfia/faroeste caboclo” que a coisa toma, com contornos que são propositadamente deformados, pessoas assassinadas, tentativas de destruição da figura pública de Marielle. E a dor da família, a busca por justiça, os olhos cansados, o corpo moído pela dor, mas que nunca desiste de continuar. Como é possível que a gente ainda diga que o Brasil tem poucos heróis, com famílias que nunca dizem nunca, como a de Marielle?
Claro que existem milhões de Marielles no Brasil que não são, nem serão vereadoras nunca – mas se esta Mariellle obteve visibilidade no mundo, é por ela, é através dela que devemos denunciar a ação das milícias no Rio e no Brasil. Nisso o filme age com a audácia da neutralidade – o que teve que ser apontado, foi apontado com absoluta naturalidade. Acho que foi o que mais doeu porque o sistema de poder do Brasil é nojento e isso fica tão claro que a gente perde a mão do que se tem que fazer pra mudar tanta coisa errada.
A polícia me desculpe, mas se tem delegado pra gente ter orgulho, perícia que levanta o contorno do braço do assassino e mapeia tudo pra encostar no Ronnie Lessa, também tem o típico policial miliciano asqueroso, cínico e mafioso. Não sei o que pensar da polícia do meu País. Quero muito confiar nela, mas não sei que caminho devo seguir pra chegar nesse lugar, honestamente.
Quem tiver meios de assistir, deve juntar a família e ver. Acho, inclusive, que as pessoas devem não apenas assistir, mas conversar sobre essa nossa mania de escolher soluções mágicas pra coisas difíceis, no Brasil. Tipo: “Se a polícia é fraca “então põe os milicianos”, por exemplo.
Também temos a mania de menosprezar nossos heróis, dizendo que eles não prestam porque tem ideologia x, y ou z. De uma vez por todas: nossos heróis somos nós mesmos e na nossa vida comum, a ideologia não muda nada. Não existe “desconto ideológico” na hora de comprar feijão e arroz. Nossos heróis são populares e fazem esforço pra estudar e subir na vida, como em todo país pobre, é a lógica. Com uma vida comum, pedindo a benção da mãe, como eu pedia da minha, Marielle – já com o alvo nas costas – caminha pelas ruas do Rio e todos nós, de casa, assistindo ao documentário, não conseguimos salvá-la. Forte, fortíssimo. Mas nos dá a coragem necessária pra seguirmos perguntando: QUEM MANDOU MATAR MARIELLE? – E continuarmos dizendo: PRESENTE.
ANA RIBEIRO, Diretora de teatro, cinema e TV
Marielle Franco
Uma mulher da periferia, negra, casada com outra mulher, que falava pelas que não podiam, que não se acanhava e que lutava pelo que era certo para todas, mesmo com toda a pressão social, política e emocional do seu dia a dia. Que dava a cara, com coragem, que expunha o que estava errado e enfrentava os que não admitem ser enfrentados. Os moralistas que não aceitam outras opiniões, muito menos de uma mulher, e ainda menos quando essa opinião pretende proporcionar justiça e uma vida de qualidade para todos. Que ainda mantêm o machismo, o colonialismo, um mundo em que só os seus direitos e opiniões valem. Que se escondem na “justiça do tiro”. Do silêncio. Do medo.
Os hábitos e comportamentos sociais enraizados que promovem a injustiça social, o crime, a corrupção precisam ser substituídos urgentemente. Decidir mandar matar quem incomoda e pode retirar luxos e tiranias enraizadas, não pode ser do século XX, muito menos século XXI. A política não pode ser um lugar para onde vão os criminosos e corruptos. Muito menos pode ser visto como um lugar de poder e de estabilidade e ascensão financeira. As pessoas com uma vida mais humilde. não podem viver com medo. A justiça e a polícia e as leis foram inventadas para proteger todos. Parece que o mundo segue dentro de um Mercedes a toda a velocidade, numa estrada sem fim, sem limites e sem necessidades. Pois bem...o universo decidiu decidir por nós...
No primeiro episódio, vemos um pouco da trajetória de vida de Marielle e da sua família, da vida de Anderson e de sua família e os depoimentos impressionantes da ex-assessora Fernanda, da mulher de Anderson e da mulher de Marielle sobre o dia 14 de março de 2018. As mensagens escritas e faladas na rotina de mais um dia, mas que a partir das 21h11, hora da morte de Marielle, mudaram para sempre. A vida muda num instante. É impressionante como pequenas ações constantes nada mudam na nossa vida, mas outras mudam tudo para sempre. E para muita gente. Muita mesmo.
Nas maioria das famílias do Brasil existe uma honra associada a festas e/ou viagens de 15 anos para as filhas. Os pais de Marielle fizeram questão de fazer uma grande festa para ela nos seus 15 anos. Algumas das poucas imagens dela em jovem e criança são desse momento.
Nos outros 5 episódios, a linha do documentário é policial, investigativa, processual e tenta relatar todo o percurso de trabalho da polícia, todas as estratégias que surgiram para atrasar as investigações, a vida dos familiares que segue com a dor e a saudade. Os suspeitos de disparar e matar, os suspeitos de mandar matar (os mandantes). Os dias que se seguem uns atrás dos outros com uma sensação de mágoa, dor e impotência para os que amavam e perderam Marielle.
Já percebemos que dificilmente se saberá quem mandou matar. Quem deu os tiros aparentemente é quem está preso, mas quem mandou “ninguém consegue” descobrir. Viverão com essa aparente satisfação, talvez a vida inteira, mas ouvirão sempre falar de Marielle Franco como alguém que tem nome de rua, que está no coração de todas as mulheres, no coração de todas as mulheres da periferia ou de classe social menos favorecida, no coração de todas as mulheres casadas com outras mulheres e das mulheres que enfrentam as injustiças e lutam pelos direitos de todos. No mundo inteiro. Pelo mundo inteiro. Como dizem os baianos “ainda é gente, viu?” Sente-se que foi cortado um caminho de progressão política e social meteórico de Marielle Franco. Quem mandou poderá viajar pelo mundo, fazer e comprar o que quiser, mas um dia, a conta costuma ser paga... A vida não costuma perdoar a ninguém.
No final do documentário fica uma sensação estranha dentro de nós. Assistir avidamente a todos os episódios do documentário porque está bem feito, com muita qualidade e fala de nós, dos que não temos poder e podemos a todo o instante ser travados pelos que têm. Ao mesmo tempo um país inteiro bate panelas nas janelas (panelaço) pedindo que quem está no lugar de líder do país, saia e deixe outro mais qualificado fazer essa função porque o mundo tem muito para se preocupar. Jura que é verdade? Jura que um Presidente de um país pode chegar a este ponto? E ainda por cima neste momento do universo? Parece piada... Inacreditável
Ana Santos, professora, jornalista
Globoplay
Episódio 1. “Maré 27 de julho de 1979 - Lapa 14 de março de 2018”
Episódio 2. Multidão
Episódio 3. Linhas
Episódio 4. O Suspeito
Episódio 5. A Prisão
Episódio 6. Perguntas
https://globoplay.globo.com/marielle-o-documentario/t/zGmSyVg7h2/