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3 Contos de verdade


Fotografia de João Paulo Pimentel

Conto “INVISÍVEIS”

Pelas ruas da cidade, deitados nos vãos cobertos, lá estavam eles – os sem teto, sem abrigo, sem cuidado de ninguém. Obviamente eram vistos por ele, mas de uma maneira peculiar porque, mesmo existindo concretamente, pareciam fantasmas que se movimentam. Quando falavam com ele, não podia deixar de sentir aquele incômodo – eram feios, num momento onde todos queriam apenas ver os bonitos e cheirosos.


Uma moeda e pronto – desapareciam. Nunca lhe ocorreu saber, perguntar ou mesmo imaginar suas histórias, já que existiam em sua vida como coisas efêmeras e passageiras. Eram parte de uma caminhada, de uma moeda dada e pronto – mas mesmo com esse incômodo quase secreto, era um cristão atuante em sua comunidade.


Rezava bastante, já que em algum momento a presença e a ajuda direta de Deus lhe seria visível. Se sentia como um Abraão contemporâneo – capaz de matar e morrer por seu Deus, mas guardava todas as mensagens piedosas da Bíblia para quando batia de porta em porta para propagar as palavras divinas.


Na entrada dos templos, mais daquelas criaturas abismais – viviam por ali, ao seu redor. Atrapalhavam.


Na energia do amor aparecia sempre uma trincadela. Uma pequena rachadura. A cada criatura humana ignorada, a condensação de energias se esgarçava. Um pouquinho por vez. E pouquinho por pouquinho, surgiram pelo mundo terroristas, ditadores, doentes de alma que usavam a religião para insuflar ódios, ao invés de amores.


Os olhos do invisível que lhe pedira a moeda nunca descolavam de sua figura quando passava porque viam-lhe a alma. “Impiedoso” – era sempre o que murmurava, dentro de seu manto de indiferença e invisibilidade. Um religioso que não sabe dividir sequer o olhar, o sorriso, o bom dia, não sabe dividir nada. Apenas dá algo para si mesmo, se travestindo de bom ou compassivo, pensava. A moeda era o espelho onde ele tentava inventar de si para si mesmo, uma personalidade cheia de uma compaixão que nunca sentira – a não ser por si mesmo, já que tudo lhe perpassava, afinal.


E assim viveu toda uma vida: passos largos sem olhar para ninguém, um incômodo, a velha moeda e a sensação de que estava mais próximo de um céu que afinal não conhecia e não lhe reconhecia.


Morreu com flores e glórias, choros, gritos e lágrimas, todas muito dignas e importantíssimas socialmente. E foi só isso mesmo. Não conseguia se glorificar como espírito e, portanto, foi ficando pelas esquinas espirituais como um andarilho, um sem teto, sem abrigo, sem cuidado de ninguém. Um sem oração, um vazio de sentimento.


Karma.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Contos “Os outros”

Ana é uma pessoa. Uma só. Mas nunca se sentiu dessa forma. Sempre sentiu que outras pessoas ocupavam espaço dentro dela. Era sempre estranho chamarem só seu nome se ela caminhava tão acompanhada. Engraçado isso, dizia ela. Numa sala pequena só cabem 10 pessoas e dentro da minha cabeça estão muitas mais... Nuns dias umas estavam mais presentes, noutros dias outras. Como se soubessem que quando uma aparecia as outras deviam aguardar. Na maior parte do tempo estavam em silêncio, mas ela as sentia mesmo assim. Raramente, mas acontecia, todas falavam ao mesmo tempo e era o caos.


Nunca falou com ninguém isso mas não interessava se essas pessoas estavam vivas ou mortas. Isso não alterava nada. As sentia iguais, em si.


Quando era mais jovem vivia muito o mundo de fora e não entendia o mundo de dentro. Tinha muitos amigos, tinha muitas tarefas diárias com muitas pessoas. Isso lhe ocupava muito tempo. Quando ficava “sozinha” parecia ter outra vida, mas era uma vida que a assustava. Assustava apenas porque era estranha e porque ninguém falava disso, nem de nada parecido. Então ficava com medo que fosse algo errado, perigoso, mau. A verdade é que sentia companhia de algo que não sabia explicar e nunca se sentia só. Os amigos e colegas de escola comentavam que ela sempre que podia estava só e que parecia melhor assim do que com eles. Nas festas, sempre que podia, fugia daquele barulho e mundo de gente para um lugar silencioso e vazio e ficava ali um pouco. Amava isso. Muitas vezes ao ar livre, mesmo com frio e chuva. Olhava pela janela para as pessoas na festa e não entendia porque precisava daquele afastamento, mas aquilo fazia-a sentir-se bem. Ao mesmo tempo amava as festas, as pessoas, mas sentia que necessitava das duas coisas para se sentir feliz.


Escolheu um trabalho que achava que iria gostar toda a vida e foi feliz durante todos aqueles anos. Era um trabalho que tinha sempre muitas pessoas e amava. Ao mesmo tempo, a alegria de ficar só, sempre que era possível, permanecia. Foi aumentando com os anos.


Chegou a aposentadoria/reforma. Ficou triste por deixar de fazer o que tanto gostava, mas ao mesmo tempo feliz porque poderia saborear durante mais tempo os seus momentos com a população do seu interior.


Seus filhos já estavam adultos e viviam em outros países com suas famílias. Seu marido morreu, seus amigos mais próximos morreram. Nada mais a prendia ao lugar onde vivia. Vendeu a casa, comprou uma motorhome/autocaravana e passou a viver em viagem, com seus “amigos” internos. Fazia uma vida bem tranquila, em silêncio. Uma vez por mês precisava ligar para uma amiga para saber dos seus correios, das suas obrigações legais de cidadã do mundo.


Fez um roteiro de todos os lugares onde os amigos que agora só viviam em si gostavam de ter visitado e foi visitando, um a um. Cada lugar, comendo cada comida que eles amavam, apreciando cada canto que sabia que eles amavam ter estado. Em cada foto sabia que não era uma “selfie” apesar das pessoas que a olhavam pensarem que sim. Não era mais uma pessoa de muita conversa. O mundo interior ocupava muito tempo e era nesse mundo que queria viver. Sentia-se feliz, acompanhada, com uma vida plena. Sabia que as pessoas achavam que era estranha, esquisita, antissocial. Mas o que interessava isso? Sorria e sentia a sensação que “todos” sorriam e perguntavam...”onde vamos agora, Ana?

Ana Santos, professora, jornalista


Conto "Da natureza"

Hoje a calma da cidade ao fim da tarde, anunciava a chegada do Verão.

E como é diferente a sua existência na ausência dos ruídos que usualmente a habitam. Estranha-se o movimento monótono dos vultos e dos rostos que se cruzam numa pasmaceira de espanto.

Aos nossos olhos tudo parece correr ao retardador, como se a fria neblina que a envolve nos atordoasse os sentidos. E tudo ostenta uma aparência sombria e austera que não reconhecemos num Verão que desejávamos apaziguador e estimulante.

Por todo o mundo a fúria da natureza revela-se de forma determinada e inclemente. Relatam-se as alterações climáticas, os fenómenos extremos, as manifestações da sua revolta e apesar de tudo estranham-se os seus sinais.

E tudo surpreende…

O calor tórrido, as chuvas torrenciais, as cheias e incêndios mortais e devastadores.

Fazem-se implodir barragens para desviar ferozes enchentes, paga-se a cientistas para que, recorrendo à tecnologia de drones, criem “chuva falsa” para combater vagas de calor.

A pandemia que nos atormenta parece esbater a cruel realidade, e toda a atenção é desviada para si num universo de mentes trémulas.



E as catástrofes naturais vão-se multiplicando a cada dia que passa, não escolhendo hora, local ou estação para se exprimirem. E lá vamos rezando para que tais tragédias não nos batam à porta, confessando publicamente como diz a canção:

“Pr'a melhor está bem, está bem,

Pr'a pior já basta assim!”.

Contemplam-se os factores de risco com uma placidez gélida, numa morte que se quer digna sobre a protecção do aumento da esperança média de vida.

Morre-se cada vez mais tarde, mas à sombra da “cobardia” humana defende-se “… que onde não há cura não poderá subsistir dignidade” – e apela-se ao direito à eutanásia.

E os argumentos são fortes para defensores ou detractores não fosse, para ambos, a dignidade fundamento essencial.

Singular dignidade esta que esquece o todo, em função da individualidade. Estranha qualidade moral, princípio ético, nobreza ou honraria que se limita à mera consciência do valor pessoal do ser humano! – dirão alguns.

O apelo do perigo numa inconsciência transversal a muitos sectores da sociedade manifesta-se assim como a grande pandemia do séc. XXI, e os estados de sítio, de emergência ou de calamidade assumem um carácter de insólita normalidade.

“Não vamos morrer da doença. Vamos morrer da cura" – descrevem alguns, e a morte é para muitos, assunto ainda tabu.

Elegem-se cuidados paliativos em detrimento de medidas e acções de prevenção da “doença” e a “saúde” do planeta é cada vez mais débil.

Ambicionamos a normalidade de outros tempos, em que tudo parecia estar num equilíbrio perfeito, e, no entanto, a brisa da tarde arrepia e assinala a mudança.


“É de uma imensa tristeza pensar que a natureza humana fala, enquanto o género humano não escuta. “

— Victor Hugo


João Paulo Pimentel, convidado

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