Estamos vivendo agora mesmo, com a pandemia do COVID-19, um momento que entrará para a história das tragédias mundiais. Mas quais são os ingredientes para reconhecermos uma tragédia? Nós, nossas fraquezas e nobrezas e as pessoas que a tragédia nos coloca diante dos olhos.
Do link aberto pelo Teatro Nacional São João (Lisboa, Portugal) para o mundo, OTELO – talvez a tragédia de Shakespeare que me dá mais arrepios e Iago – o vilão dos vilões. Um nome tão amaldiçoado, que poucas pessoas se chamam Iago no mundo, mesmo sabendo que já se passaram mais de 4 séculos desde seu lançamento.
Quais são os ingredientes de uma tragédia? Humanidade. Há fraquezas, sonhos, desejos e há um herói que busca construir melhorias para si e para os outros. Mas há também um vilão que não é altruísta, não tem resiliência e pensa em si. Que diante de corpos empilhados, os olha e diz: “E daí”? – Histórico.
A qualquer momento da vida você pode ser surpreendido pela tragédia. A forma como nós nos comportamos diante dela é que nos distinguirá. Somos/seremos heróis ou vilões?
Nessa montagem de OTELO, meu primeiro aplauso é para a iluminação – sombria, lúgubre. Você vê vultos semi-iluminados e acaba se deparando com o que é capaz de imaginar. Muita coisa do que acontece é enriquecida por dentro da sua cabeça. A luz gera muito movimento porque faz parte do cenário, seus reflexos, interage com projeções de rostos, expressões e também com a trilha. E que trilha! Ao assistir, não consegui sequer fazer a separação entre cenário, trilha e luz de tão simbióticos. E mesmo conhecendo o texto – o desconforto permanente, e expectativa de que o pior ainda estava por vir – como agora, com COVID, estão ali o tempo todo. Saber que o pior ainda vem e que as pessoas insistem em querer sua vida normal antes da hora é você estar diante da tragédia e não conseguir forças para evitar nada. É a impotência total do espectador, diante de uma tragédia perfeita.
Iago é um grande manipulador e o ator que o interpreta sabe e usa isso com uma dicção impecável, sabendo exatamente o que cada palavra quer dizer. Por isso não existe intenção aleatória.
Ao contrário, discordei da essência de Otelo. Um mouro poderia ser de qualquer raça, menos branca. Eu adoraria ver uma enorme diferença étnica que só no olhar fosse autoexplicativa para a atitude de Iago. Não sei, imaginar Otelo como um grande homem e vê-lo ter um ataque histérico não combina com o que imaginei. A mesma impressão de coisa fora do lugar tive na cena da morte de Desdêmona.
Amei as mulheres, Desdêmona e Emília. Às vezes, até mais Emília. As cenas finais são perfeitas. Por outro lado, não consegui entender os motivos de Cassio, com tantos gritos e ainda por mais outro lado achei a concepção para Rodrigo excelente - em cada cena temos a compreensão inteira de seu uso, por Iago.
Há tanto a dizer de uma tragédia com a complexidade da vida.... Por quê, durante uma quarentena, aquele que deveria ser o líder perverte a ordem mundial e é seguido ainda assim? Por quê as pessoas insistem em não presumir que, se no mundo morreram milhares que fizeram tal coisa, no Brasil isso também vai se repetir? Por quê se acredita, não se faz perguntas, mesmo quando toda a lógica aponta para outro lugar? Qual é o encantamento dos vilões? O incômodo eterno das tragédias continuamos sendo nós e nossas estranhas idiossincrasias...
Indico a peça. Fortemente. Mesmo com a diferença de sotaque e acento melódico. Indico o tema. Fortemente. Estamos diante de pseudo-heróis e continuamente eles nos enganam. Se as pessoas não conseguem se reconhecer no teatro, no trabalho do ator, vão ter que passar pela dor porque é a dor hipotética que nos salva, que nos ensina. É a mímesis ou a nossa capacidade de imitar. De aprender com o que vemos. Será que o verdadeiro incômodo da civilização é estar diante de uma “desaprendizagem” geral?
Incômodo.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Esta obra me dá uma vontade tão grande de falar com Shakespeare, que chega a doer. Como ele soube descrever tão bem o que os “Iago’s” provocam na vida das outras pessoas. Como ele deve ter sofrido isso tanto, ao ponto de saber descrever com tanto detalhe, todas as “fases” do “processo”.
Talvez eu esperasse um ator para Otelo mais alto, com menos “barriguinha”. Talvez seja preconceituoso sentir e afirmar isso. Mas na minha cabeça, Otelo é um homem forte, alto, poderoso fisicamente. Seguro, com uma luz e uma voz que enche os lugares onde chega. Seguro do seu amor e feliz. Desdêmona, uma mulher feliz e entregue ao seu amor. Os outros, os silenciosos, os calados, os que omitem, os que olham para o lado, os que dizem que gostam das pessoas mas que não se mexem enquanto elas são destruídas. E...no final ficam com muita pena de tudo o que aconteceu. Também tem os que querem se dar bem, que acreditam nas mentiras e manipulações de Iago. Que acham que controlam, que aguentam e que no final algo restará para eles. Quem sabe até ficam com tudo. Pois é...alguns sempre acham que conseguem controlar os especialistas da maldade. Mas, todos mostram o seu jogo, as suas verdades. Todos se expõem. E permitem a Iago dizer, fazer, alterar, mentir, como quiser. Controlar tudo e todas as vidas. Assistir à peça Otelo é reviver e recordar de pessoas que passaram nas nossas vidas. Umas Otelos, outras Desdemônas, os Cássios. E os Iagos, os Iagos. Hoje chamamos os Iagos de sociopatas, invejosos, cobardes. Desconfiem de pessoas honestas e sem máculas em seu caráter. Principalmente se lhes foi dado tudo e ainda assim perseguem os que são seus amigos de verdade e lutam pelos sonhos sem ajuda. Um ser humano de verdade costuma mostrar também as suas menores qualidades e se rir delas. Se mostra inteiro. Como diz Ricardo Reis:
“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”
Os que calam e os que se querem aproveitar da situação, precisam acordar. Os Iagos não costumam destruir só uma pessoa na vida. Eles vão caminhando e cortando por onde lhes for permitido. As pessoas precisam ser mais honestas umas com as outras e não permitir que os Iagos destruam sem limite na frente dos seus olhos. Acordem. Um dia serão vocês, vossos filhos, vossos netos. Eles não sabem parar. Vocês que precisam ajudar a dar os limites. Depois não digam que não foram avisados.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre a peça de teatro:
https://www.tnsj.pt/pt/espetaculos/5735/otelo#synopsis
Encenação, cenografia e figurinos: Nuno Carinhas
Elenco: António Durães, Diana Sá, Dinarte Branco, Joana Carvalho, João Cardoso, Jorge Mota, Maria João Pinho, Paulo Freixinho, Pedro Almendra, Pedro Frias
Sinopse: Otelo, o Mouro de Veneza (no original, Othello, the Moor of Venice), é uma obra de William Shakespeare, escrita por volta do ano 1603. A história gira em torno de quatro personagens: Otelo (um general mouro que serve o reino de Veneza), sua esposa Desdêmona, seu tenente Cássio, e seu sub-oficial Iago. Por causa dos seus temas variados — racismo, amor, ciúme e traição - continua a desempenhar relevante papel para os dias atuais.