Rascante e o tempo inteiro. Mas repare bem que rascante, não significa violência explícita. Mas está tudo ali. E como os problemas das pessoas – os nossos problemas - ficam patéticos... o que aconteceu com os refugiados agora, na pandemia? Engraçado que eles simplesmente deixaram de ser mencionados – é como se tivessem mesmo desaparecido. Quanto os refugiados importam no mundo? Bem, são mais ou menos 70 milhões de pessoas fugitivas de suas realidades, 50% crianças – dado do filme. Não é um choque? Um país do tamanho do nosso e o ministro piromaníaco do meio ambiente incentiva a meter fogo em tudo, a destruir tudo. Não temos elefantes como no filme, mas temos boa parte do resto... o maior bioma é um resto relevante, afinal.
Mas então é um filme ambiental? Não. É um filme onde vemos os bandidos tomarem conta de inúmeros segmentos do mundo, com autoridades ou omissas, ou coniventes ou as duas coisas juntas vendo tudo, enquanto as pessoas morrem aos montes, de muitas mortes diferentes.
Cena 1, refugiados invadindo e tentando pular um dos inúmeros muros erguidos na Europa – e se engancham ali, parecendo Cristos crucificados pós-modernos. É o sinal para a nossa pegada de destruição, que é gigantesca e aponta em todas as direções. Mas ali, em meio à desordem absoluta, já dá pra gente perceber que ninguém tem interesse em ajeitar um pouco a injustiça social do mundo porque ela é necessária para que os bandidos ajam. Deveríamos fazer algo para nos interpormos, mas... estamos com nossos próprios problemas, imersos em filhos rebeldes e neuroses, enquanto os refugiados, os pobres, os favelados nem pensam em neurose – pensam em comida.
Como podemos fazer isso? Como se pode jogar comida fora vendo, assistindo que há inúmeras pessoas na Bahia, no Brasil, no mundo inteiro que precisariam de um pouco do que desperdiçamos? O filme mostra esse nosso “desperdício mental” absurdo, a controvérsia do “ter”, que pode ser gigantesca em países como o Brasil, por exemplo. Tantas preocupações inventadas do abandono emocional, ao mesmo tempo em que vemos crianças totalmente abandonadas se adotando entre si para que possam manter laços. Manter laços humanos. Mantemos laços humanos? Somos capazes?
É como enterrar um punhal no fundo de você para nos salvarmos, se isso ainda for possível. Você que acha corrupção uma oportunidade. Você mesmo! Você ajuda? Ou você é do grupo que vai à praia e não quer nem saber? E se alguém que você ama morrer? E se você tiver que arcar com a culpa e a desconfiança de ter provocado ou facilitado a morte de alguém? E se você desviar o dinheiro que mantém as pessoas vivas? Ou um elefante morto não leva a raça à extinção? Você acha isso? A sociedade pode combater o mal apenas não o consumindo? Boas perguntas... Veja o filme, mas não deixe de se perguntar depois o que você não está fazendo. O que você não está fazendo? O que? O que?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Bons atores, uma produção madura, um roteiro muito real. Adam Nourou, Moustapha Oumarou e Zayiddiya Dissou, são jovens atores sensacionais, os 3 lindos, muito expressivos, olhos gigantes de emoção e sorrisos encantadores. Como a expressão facial e a naturalidade dessas expressões é tão importante num ator! Tente não perder...é um filme importante.
Várias histórias dentro do mesmo filme. Várias mensagens chocantes, verdadeiras. Vários avisos sobre o sofrimento, sobre a injustiça, a desigualdade e sobre a “cegueira” humana. Uma adolescente a quem tudo lhe é dado, só quer desobedecer, fazer o que está errado, experimentar riscos atrás de riscos. Recusa o amor e vive confrontando tudo e todos. Não faz ideia da sorte que tem. No mesmo mundo, 70 milhões de pessoas fugiram de suas casas para sobreviverem e metade são crianças. 35 milhões. Vivem coisas horríveis na busca da sobrevivência, de uma vida digna. Muitos, demasiados, morrem durante essa busca. Eu choro fácil e nos filmes isso piora. Neste filme, as lágrimas nem saíam. É tudo tão duro, tão real que te dá vergonha de ter conforto, comida, proteção. Te dá vergonha por teres tido sorte na vida, pelo lugar onde nasceste, pelo lugar onde vives. Durante o filme me perguntei muito porque tantas pessoas perdem tempo estragando sua vida e a dos outros. Porque tantas pessoas querem dinheiro fácil, vida fácil, não constroem nada, não defendem nada nem ninguém. Vivem como se estivessem a passeio. Outras tantas pessoas nem pensam no efeito que suas ações egoístas provocam na vida dos outros. Outras precisam estar sempre em primeiro lugar em tudo, como se a vida lhes desse um certificado que levam consigo quando morrem. A pandemia, tão assustadora e cruel, parecia vir também para acordar e realinhar todos os seres humanos numa vida em comum e feliz. Mas enquanto uns sofrem profundamente, outros ajudam em tudo o que lhes é possível, continuam a existir os que vêm tudo como uma oportunidade para se darem bem, pensando apenas em si. Um filme que parte o coração pela realidade triste que o ser humano insiste em viver desde que existe.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt9616700/
https://www.netflix.com/br/title/80993647
Diretor: Salvador Calvo
Roteiro: Alejandro Hernández
Elenco: Moustapha Oumarou, Adam Nourou, Zayiddiya Dissou, Anna Castillo, Álvaro Cervantes, Jesús Carroza, Miquel Fernández e Luis Tosar.
Sinopse: No extremo norte da África, próximo à Espanha, uma criança faz uma jornada sofrida, um pai reencontra a filha e um policial é atormentado pela culpa.