O cinema japonês nos coloca diante de frases como: “Nós nascemos para ver e ouvir o mundo; mais nada”. É um choque, muito mais que uma frase. Porque cada vez que olho ao redor, vejo pessoas que sofrem e são espezinhadas apenas por serem diferentes das outras – não importa nada em quê. Ver e ouvir o mundo é para poucos. Não dá tempo, de tanto que nos defendemos.
No filme, uma senhora de mais de 70 e que teve hanseníase na juventude continua sofrendo exatamente o mesmo preconceito de quando era jovem porque suas mãos ficaram deformadas. Uma excelente cozinheira, “via e ouvia o que os feijões azuki lhe diziam”, mas... Também assim era o gerente da loja de “dorayaki” – teve um ataque de fúria, machucou uma pessoa e a partir daí... E por último uma menina que ia ao lugar pegar as sobras e conversar – como precisaria sair da escola e trabalhar... Três diferentes, temporariamente ocupando o mesmo espaço.
Há um vírus no mundo que nos obriga a ficar em casa para nos protegermos uns aos outros e os governos precisam nos ajudar, ao invés de nos pedir ajuda. Uma vez sem impostos; uma vez pagando aos mais frágeis para ficarmos todos em casa e nos protegermos. Uma vez na vida gastando conosco um pouco do muito do que gastamos com os governos. No Brasil, 1/3 do que ganhamos pagamos aos governos. 1/3. Desde que começamos a trabalhar, até o final da vida. 220 milhões de pessoas que agora e temporariamente precisam que o governo pense em nós e nos devolva uma pitada do que damos/demos. Também lá está outro tipo de diferente. O tipo vilão. O vírus. Ficar em casa ou a possibilidade real de adoecer ou pedir de volta parte do que pagamos. Ter medo de morrer. Saber que o sistema de saúde não aguenta muito menos do que isso. Diferentes.
O que fazemos com os diferentes? Nós os ouvimos? Temos bom senso? Abstraímos qual a sua diferença, se a podemos absorver na nossa vida comum? Pode trabalhar sem uma perna, uma mão, cego, surdo? Pode trabalhar se teve uma doença? Então precisa ser aceito, claro. Mas é? E o filme inteiro, você fica olhando os diferentes sendo massacrados com olhares, pequenos comentários, indiferenças.
Uma obra maravilhosa, que nos coloca diante da nossa possibilidade de deixarmos de ser mesquinhos, abjetos, vis. Não vis porque vamos matar e arrancar o couro publicamente, mas porque uma forma sutil de massacre também massacra. Personagens sólidas, bem executadas, num cenário que anda pelas pontas entre a beleza extrema e a escuridão – e onde o dito normal é a escuridão, a dor. O Yin e o Yang.
E reparem: quem manda trabalhar, quem sai de casa sem motivo nenhum, se adoecer, vai para os melhores hospitais que existem, vai ter respirador, oxigênio, os melhores médicos – tudo de primeira, com o nosso dinheiro. Mas e nós? O que acontecerá se adoecermos?
Ah, sim o vírus é diferente – mas sendo diferente, tem poder – o que os diferentes comuns, pobres, negros, aleijados não têm – os que tiveram lepra, como no filme, por exemplo. Os que foram achados pela doença. No filme, o gerente assumiu ser diferente e enfrentou o sistema. Dorayaki! Dorayaki! Mas é preciso coragem. Fica em casa. Tenha essa coragem.
Está no Telecine, que está com ao sinal aberto.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Demorei a escrever sobre o filme. Demorei a encontrar as palavras. Nem sei se encontrei todas. Chorei muito. O filme é muito terno como muitos filmes orientais. Lento como os dias, suave como a brisa, penetrante como as memórias e verdadeiro como o coração e a vida das pessoas especiais.
Este filme chega lento mas nos atinge como um tiro emocional no meio do peito. A tristeza e melancolia dos dias das pessoas que carregam a dor, a tristeza e a insatisfação de uma vida sem solução. Tem uma velocidade nas pessoas frias e que só pensam no lucro e em dinheiro e tem uma lentidão nas que buscam a vida. Viver.
O que existe de mais belo do que sentir o calor do sol? O frio da noite? O cantar dos pássaros? A vida em pleno movimento? O que importa viver se não apreciamos a vida e os momentos dos dias? As pessoas? O sabor das coisas? Se não acompanhamos com amor os alimentos que cozinhamos e que vamos comer? O valor das coisas? Da vida? Uma mulher que aos 14 anos foi levada pelo irmão para um sanatório para ser avaliada. Seu irmão falou na viagem que se ela tivesse lepra, teria de ficar. A exclusão do mundo ao se decidir a vida dos outros. Viver a vida de uma forma fisicamente limitada não te dá outra alternativa senão olhar para o que ninguém te pode tirar – a capacidade de ver, saborear e cheirar. De apreciar o bom dos dias, as pessoas que te rodeiam. O sofrimento te empurra para amadurecer e para dar valor ao que importa.
Por outro lado, ser criança ou jovem, viver com a família fisicamente, mas emocionalmente só. Encontrar na vida afinidades com pessoas que se tornam família. Porque não se aponta, não se acusa, não se critica. Se aceita, se preocupa, se ama. A menina que ia comer “dorayakis” recheados com pasta de feijão, que sobravam na loja porque ficaram tortos.
Finalmente, pagar duramente pelos erros que se comete em momentos de infelicidade. Tendo pessoas que sabem explorar e lucrar com isso, em vez de compreender e ajudar. Estar junto. Porque não sabemos se um dia também teremos um momento de infelicidade. Não sabemos. Nada somos. O senhor triste que fazia e vendia os "Dorayakis".
Razões de sobra para não perder um filme belo, incrível e essencial. É um tapa na cara, uma despertar para o essencial. Precisamos todos disso de vez em quando. Desse despertar. Veja e se emocione. Vale totalmente a pena.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt4298958/
Telecine (atualmente gratuito)
https://www.telecineplay.com.br/programacao
Circuito de Cinema Saladearte
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha