Um doc de 2015, visto 5 anos após o lançamento porque o COVID praticamente o lançou diante de mim, “WHAT HAPPENED, MISS SIMONE?” tem a força irrestrita de Nina diante de tudo – e como ela tinha força... Havia nela uma raiva ancestral, uma revolta incontrolável que seu marido tentou organizar, depois podar, depois arrancar em pedaços, mas que nada, nem ninguém conseguiria dominar – nem ela mesma.
Nina Simone era uma dor que gritava a cada gesto e o filme mostra como a dor pode se alastrar para todos os que a rodeiam. Há depoimentos incríveis, em interpretações inesquecíveis. Um filme com uma montagem de bom gosto, sem nenhum desejo de passar do simples porque tudo em Nina era bombástico e a discrição da direção acaba por acentuar quem ela era.
Sua filha, como quem ama e deve sinceridade a quem é o objeto do amor, fala de seu próprio sofrimento e do sofrimento da mãe, das agressividades, inseguranças, desequilíbrios. Havia ali, no mesmo lugar em que estava a criatividade, a genialidade, uma dor agressiva, que se estendeu a tudo e todos, ao mesmo tempo em que as necessidades de sempre, a fome, as contas a pagar dominavam o gênio, domavam o espírito que doente, tentava encontrar seu caminho.
O doc é muito claro ao apontar, desde o princípio, o poder do preconceito na forja do espírito humano e Nina Simone, nascida no sul dos Estados Unidos, esteve sendo incendiada por todo tipo de ação que, para os que as tomam passam despercebidas, como reprovar e impedir um gênio do piano de estudar num grande conservatório. Mas para quem é impedido... Nunca tocar Bach como a grande intérprete que sabia que poderia ser, nunca entrar como solista num grande teatro, ver a música com olhos de sobrevivente e não vivente, sentir a falta essencial por não se sentir parte de uma sociedade onde ela era genial o “contrassenso negro” – tudo isso a coloca com a mesma ferocidade na política contra o racismo e leva sua carreira muitas vezes para o ostracismo.
Um filme difícil de ver sem medir semelhanças com o Brasil – terra onde todos se dizem amorosos, mas capaz de criar monstros que nem piscam ao falar em apartar doentes do COVID em espaços que lembram campos de concentração, que nem piscam em falar contra as cotas, sem contribuir com nada além da crítica e do negativismo, numa agressividade social que aparta, desvaloriza e menospreza quem “não preenche” os requisitos.
WHAT HAPPENED, MISS SIMONE? dói, por isso. Mas numa terra como a nossa, toda a dor que apontar para mudanças é bem-vinda. Por isso veja. E se veja. Que papel cada um desempenha na equação preconceito/desequilíbrio?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Todos conhecemos a música, as composições, a criatividade, o jeito diferente de cantar e as performances de Nina Simone. Um caso à parte. Mas este documentário é impressionante na abordagem que faz do que foi a sua vida, do que sofreu, do quanto fez sofrer, do que perdeu e do que deu ao mundo, mesmo assim. O nome do documentário, “O que aconteceu, Miss Simone?”, refere comentários de alguns artistas amigos seus, que na época se interrogavam, como alguém com tanto sucesso e aceitação, consegue “estragar” tudo?
O documentário nos mostra uma pessoa com uma energia, vontade e talento inacreditáveis. Um “monstro” de energia. De intensidade. De fogo. Mas que, como refere a sua filha, essa energia que víamos nos espetáculos, permanecia no dia a dia. E o ritmo dos dias não é esse ritmo. Não é mesmo. Ela “não desligava”. Era 24 horas como víamos nos espetáculos. Percebemos que o relacionamento com o marido foi tudo menos perfeito, que depois do divórcio, surpreendentemente, tudo pareceu piorar e que, finalmente existe um nome para todos os seus comportamentos fora da norma ou estranhos ou agressivos. Ainda vivemos épocas difíceis para aceitação da doença mental, imagina nessa época. Imagina em alguém que enfrentava o sistema, que era mulher, negra, artista. Dá uma dor no coração ver uma coisa destas. Ver como alguém vive sofrendo diariamente, não entendendo porque reage assim, porque é assim. Os que a amavam sofrendo também, sem saberem o que fazer. Como a maioria das doenças mentais, só quando já se sofreu demasiado, já muito foi destruído, já é quase “fim de linha”, é que algo se faz. Ou se tenta resolver.
Tem uma imagem de Nina Simone dançando no palco que parece dança de orixá. Lindo!
Não sabia que Nina Simone tinha aprendido piano clássico. Lidava com o piano de uma forma “fácil”, com as mãos “fazendo” parte das teclas e agora entendo porquê. A base clássica é realmente fundamental e está constantemente no desempenho. E não permaneceu no mundo do piano clássico porque a ação “discreta” e “racista” de pessoas que se acham superiores, a impediu. Horrível!
Documentário imperdível! Mesmo!
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt4284010/?ref_=vp_vi_tt
Diretor: Liz Garbus
Elenco: Nina Simone, Lisa Simone Kelly, Roger Nupie
Sinopse: Conheça a vida da cantora, pianista e ativista Nina Simone com gravações inéditas, imagens raras de arquivo, cartas e entrevistas de pessoas próxima da cantora. O documentário retrata uma das artistas mais incompreendidas de todos os tempos.
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