
O que faz com que uma pessoa – seja ela policial ou presidente – se sinta superior à algumas outras? Onde está o botão, quem aperta o botão do poder, do “farinha pouca meu pirão primeiro”, do “para os meus filhos eu quero filé”?
OS MISERÁVEIS diz a que veio. França, século XXI. Idiotas iguais aos brasileiros. Miseráveis iguais aos brasileiros. Lá, os miseráveis têm uma casa; aqui, nem isso. Polícia brutalmente racista, preconceituosa, folgada, cruel, libertina, armada, covarde. Porque podem; afinal quem são os alvos? OS MISERÁVEIS. E eles estão ali às dúzias. Pobres, negros, muçulmanos, segregados como os nossos pobres, invisíveis, desprezados. No filme, cabe à polícia o papel desprezível.
Na “geral” – “tu é black, tu é viado, tu vai apanhar”. Apanhou. Aqui em Salvador tem gente que comete o crime de usar cabelo black. Parece que nem temos crimes suficientes no Brasil. Aqui não precisamos pegar político, miliciano, traficante, policial corrupto, garganta, grosso, vazio de ideias, pouco inteligente, mas cheio de “esperteza”... Mas menino de cabelo black serve pra apanhar. Meu Deus, como é tremendo a gente tropeçar com a mesma coisa dia e noite, não importa o lugar. Como é nojento você ter que, ser obrigada a ouvir, obedecer a pessoas porquê de alguma forma elas se apoderaram da autoridade pra exercerem formas diferentes de medo. E nós temos que aceitar isso e baixar a cabeça sempre? As crianças francesas não fizeram nada disso. Aqui e lá são taxadas de terroristas, bandidas, marginais. Mas um segmento gigantesco do mundo tomou um pé na bunda das autoridades e não têm acesso ao conhecimento. Não é matéria escolar, como parte de uma indústria educacional de mau gosto e mau uso; é conhecimento. E pra quem nos rouba, nada acontece, nunca. Nunca.
No filme, aconteceu. E diante de tanto abuso você briga com o primeiro sentimento que é de “bem feito” - quando a coisa deixa de ser um castigo e passa a ser totalmente descontrolada, louca, violenta, vingativa. E com tanto ódio, desprezo, explosão, desajuste, falta de educação, de princípios, de ética, respeito, o público, a classe média, olha perplexa para o desfecho da intolerância, do abuso de poder, da falta de vontade política, da nossa inoperância e omissão, do vazio de iniciativas verdadeiramente preocupadas com o bem-estar de todos. Nós somos todos miseráveis e o maior mérito do filme é nos colocar diante disso, com interpretações realistas, câmera viva, angulação apertada. Prendam os caras nos 3 Poderes e os obriguem a ver o resultado de tanta indiferença e falta de escrúpulos. Porque se nós somos os miseráveis nesse fogo cruzado, eles são os desgraçados que construíram isso.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um filme com o título de “Os Miseráveis”, uma das grandes obras de Victor Hugo, sobre miséria e injustiça social, numa França dilacerada pelos atos terroristas, pelos problemas sociais, pela mistura nem sempre conciliável de povos e culturas, abre a porta. Quem se interessa pelos problemas do mundo e das sociedades atuais, não pode perder. Não pode deixar de entrar nessa porta e se disponibilizar para depois conversar, pensar em como pode ajudar. Mas é um filme chocante por expor a realidade.
Que belos atores todos os meninos e adolescentes. Os adultos também. Excelente filme. A França tem tido a coragem e a frontalidade de continuar a fazer cinema de preocupação social. É urgente que outros países como o Brasil e Portugal possam também seguir este caminho. Não o caminho de mostrar a realidade, de fazer ficção com a realidade, mas de mostrar e confrontar as pessoas com a necessidade de encontrar respostas para todos. Não podemos ficar a fazer filmes tecnicamente interessantes, com roteiros interessantes, enquanto o mundo precisa que o mesmo cinema ajude, alerte, apoie, dê saídas.
Issa, é em certa medida o Jean Valjean (da obra “Os Miseráveis”) do filme. Não rouba pão e é condenado 19 anos, mas é sempre o que faz ações erradas e ilegais. Não sabe o que significa comportamento errado e certo. É um menino que ninguém quer, nem pai nem mãe, sem apoio familiar, sem ter um lugar, que sempre que tem vontade de fazer algo, faz algo ilegal. Nitidamente o perfil de tantos meninos no mundo que seguem seus ímpetos, suas vontades, seus instintos, sem terem noção nenhuma de regras, de limites. Nunca aprenderam. Nunca ninguém teve amor suficiente para lhes ensinar. E por isso pagam muito caro. Issa, sofre humilhações e outro tipo de abuso e traumas. É lhe mostrado que ele não presta, que está só. Nós os que sabemos as regras, em vez de ensinar os que nunca as aprenderam – castigamos, torturamos, atacamos, humilhamos, ensinamos a mentir, etc. Esquecemos que os jovens quando se sentem injustiçados, se unem fortemente e algumas vezes imprevisivelmente. E sem medo de instituições, de família, dos poderosos, dos superiores, etc, etc, etc. Porque o que vêm são adultos que fazem a sua lei como lhes convém. Porque os adultos não se respeitam, nem respeitam ninguém. Porque eles deveriam fazê-lo?
Numa cena pequena o filme aponta com muita clareza que ainda hoje ser mulher, mulher bonita, mulher jovem, mulher jovem negra, mulher jovem muçulmana, é ter uma vida de sobressaltos e de enorme injustiça e risco. Uma injustiça que não sei quando terminará.
Novamente se aponta a capacidade superior de lidar com a tecnologia que os jovens têm e o quanto isso pode ser útil. Isso devia ser aproveitado pelas sociedades. A facilidade de dirigir um “drone”, de usar as redes sociais para se comunicarem, ou para se desmascararem. Pessoas adultas muito diferentes serão os jovens e adolescentes de hoje. Seria tão bom se fossem melhores do que nós. Decidimos isso na educação... E nos últimos anos o mundo está a fazer tudo errado com a educação. Os resultados estão expostos no filme, na criminalidade, na pobreza, etc, etc. É chocante ver os resultados dos nossos erros...e ver que quem pode mudar este caminho tão errado, os que mandam no mundo, são pessoas que vivem em “gaiolas de ouro”, vivem vidas de luxo e seus problemas são não poder comprar a Lua.
Precisamos de ver estes filmes, mas dá uma tristeza e uma vergonha tão grande dos adultos que nos tornamos. Como é possível?
É tão fácil fazer bem as coisas, investir na educação e na saúde. Parecemos autistas, cegos... Ou somos???
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt10199590/
Circuito de Cinema Saladearte