
Em Adam, num lugar particularmente machista, uma mulher precisa escolher entre entregar o filho à adoção ou ficar com ele, sabendo que a segunda opção significa que a criança sofrerá preconceito e marginalização a vida inteira. Quem condenaria seu próprio filho ao sofrimento? O que seria a maternidade, senão a proteção da vida inteira de um filho? E se, no seu desespero, não houvesse saída além de morrer, matar, entregar um filho recém parido e muito amado ou estragar a vida dele, tendo que enfrentar toda sorte de preconceito e maus tratos, num País com a cultura do Marrocos?
O roteiro é primoroso por isso – não há respostas. Você sai com dúvidas e respostas conflitantes e antagônicas.
Ao mesmo tempo, as imagens são tão próximas que você “sente” as cenas: a boca enche d’água com aqueles pães e quitutes deliciosos, sente a pele esticada da barriga e a mão na massa, a gastura com o lápis nos olhos – tudo provoca nossos sentidos no filme. A interpretação, sem nenhum parêntese – é incrível. Até o bebê parece estar sincronizado às cenas. Em diferentes momentos das atrizes, antes e após o nascimento do bebê, as atuações são dolorosamente perfeitas. Seja lá por qual ângulo você veja, Adam levanta um tema complexo, de um ponto de vista bem diferente ao de Papicha, mas com a coragem de mostrar as implicações sociais, religiosas e culturais que os homens insistem em não ver quando o assunto é “gravidez de mãe solteira”.
Papicha e Adam são filmes a serem exibidos para turmas de meninos a partir de 12 anos – discutir sentimentos faz muito mais sentido do que indicar o uso de camisinha – não entendo como as agências dos governos insistem em não ver isso. Vejam os filmes, os dois – sintam a dor de ser mulher numa sociedade como a nossa e depois, homens, entendam o significado de “pimenta nos olhos dos outros, é refresco”. Filme forte, intenso e imperdível.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um filme com uma fotografia bem marroquina, maravilhosa. Quem já visitou Marrocos ou outros países do Magreb, reconhece aquela luz, aquelas casas, as roupas e a comida. Diferente. Quase dá para sentir os cheiros das ruas.
Muito bonito poder assistir a um filme de uma roteirista e diretora de Marrocos. O mundo parece estar a recuar em muitas coisas, mas com certeza este filme é um enorme avanço civilizacional e social, por ser feito por uma mulher e pelo que expõe. Digamos que nos mostra muitos problemas sociais em volta das mulheres destes países, mas só o fato de ser possível fazer um filme sobre isso é já o início de uma libertação. Aguardamos os próximos filmes de Maryam Touzani, com muito carinho.
Atrizes muito expressivas, intensas. Mesmo a menina. Que coisinha mais fofa e que excelente atriz ela.
Sociedades machistas provocam medo nas mulheres e elas próprias se censuram, evitam a liberdade, a diferença e a ousadia social. Elas próprias colocam as regras, as proibições e a permissões. Em tudo da sua vida. Como uma precaução perante o medo da desgraça. Tudo para serem aceites porque existem lugares no mundo que se a mulher não cumpre as regras estipuladas pelos homens, é excluída, é apedrejada, é morta, etc, etc, etc. Já nem falo nos casos em que é culpada sendo inocente, o que acontece inúmeras vezes.
Os países do Magreb são lindos, culturalmente impressionantes, com uma culinária invejável, mas são lugares que mesmo como turista intimidam. Mais ainda se for turista mulher. A forma como os homens olham, o fato de a partir de determinadas horas do final da tarde ser perigoso estar na rua, mulheres são aconselhadas a nunca estarem sozinhas ou a nunca estarem em grupo só mulheres na rua. Tudo isso dá uma ideia do que pode acontecer se alguma mulher quiser desobedecer a esses alertas. Os ataques sexuais de grupos numerosos de homens a mulheres que aconteceram no Cairo, nas manifestações da Praça Tahrir, em 2011, como o ataque horrível de mais de 200 homens, à correspondente famosa da CBS (EUA), Lara Logan, deixam uma sensação clara de medo. Uma tristeza enorme porque estes lugares têm uma história, uma beleza e uma culinária e muito mais coisas, sensacionais. Sensacionais.
Mulheres excluídas das famílias e da sociedade por causa da gravidez fora do casamento é um assunto inacreditável porque parece que a mulher faz filhos sozinha. O homem e a mulher transam e nesse momento é tudo amor e sonho. O homem tem “necessidades físicas” e a sociedade perdoa e permite a continuidade dessa liberdade a favor das suas necessidades. “Você não sabe que ele é assim?” A gravidez? Deve ser “erro” da mulher. Como o homem erra? Nunca. Isso nem é uma das possibilidades. Homem que não “resiste” às mulheres, é o “cara”. E ainda se sente o máximo. Mas as mulheres mais velhas, como suas mães, tias e amigas, concordam em absoluto. Olha que homem ele ficou...um homenzão...uau... Nos países do Magreb isso é muito visível, mas não pensem que isso só existe por lá. Existe muito mais perto de você do que você imagina. Ou do que você não quer ver.
O que a mulher grávida do filme decide fazer para poder ser aceite na sociedade é desesperador. Como uma sociedade permite que regras sem sentido existam e que obriguem mães a pensarem em alternativas extremamente radicais, difíceis e traumatizantes para todos os envolvidos? Não seria sensato, num mundo sensato, de pessoas sensatas, à medida que percebemos que as regras não resolvem as situações, alterar regras e procedimentos sempre em busca de equilíbrio, saúde e bem estar de todas as pessoas? Isso deveria ser uma das grandes preocupações de Fundações, ONG’s, Prêmios Nobel, personalidades mundiais, Governos. Mas não dá visualizações, não dá dinheiro, os homens teriam de respeitar as mulheres. A sociedade (os homens) preferem manter os absurdos, em busca de fama, dinheiro e poder. O Bug tenta e tentará sempre contribuir para que tudo isto possa mudar e melhorar.
Termino com culinária, um dos meus amores na vida. A culinária do Magreb é extraordinária. Simples, artesanal, amorosa mesmo. E uma delícia. Vou com certeza experimentar algumas das receitas que fazem parte do filme. Saí do filme babando.
Ana Santos, professora e jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt10199664/
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha