É terrível para o nosso gênero assistir – no meu caso, praticamente ter que assistir – a homens se referindo a nós pejorativamente o tempo inteiro para justificar a falta de interesse do machismo crônico.
Socialmente falando, há muitas famílias – e garotas – perdidas. O Brasil é cheio delas, por exemplo. O mundo é cheio delas. Como em qualquer lugar do mundo, quando a menina não sente que tem nada a comercializar, vende a si mesma e sua autoestima.
O filme é isso. Mais de 96 vezes isso. Eu digo mais de 96 porque 96 meninas foram assassinadas, enquanto homens – delegados, médicos, responsáveis por repartições, pelo 911 e pelo deslocamento da polícia – pensaram: uma prostituta merece esse esforço? O que leva ao grande questionamento do filme: o Estado recolhe impostos de todos sem olhar para os lados e depois “escolhe” a quem deve atender, devolvendo em serviços o dinheiro que nos foi retirado compulsoriamente. Por que?
Prostitutas podem morrer sem assistência, mas a filha do desembargador não. Por que? Essa questão massacra a minha cabeça todos os dias. As pessoas que estão jogadas pelas ruas da Cidade Baixa, à vista de todos, incomodam menos do que se viessem do Trapiche Adelaide?
O filme fala apenas e tão somente disso. São 96 meninas que se prostituíam e que, num período de 15 anos, foram vitimizadas por alguém que a polícia jamais se dedicou a procurar. No Brasil, nem precisa ser prostituta. Basta ser pobre. É duro como um soco, principalmente porque é baseado em fatos reais. Portanto houve mesmo 96 assassinatos sem prisão. Quantos assassinatos temos no Brasil com a mesma resposta? Muito mais de 96. Não em 15 anos. Talvez em um único ano. Dar queixa numa delegacia? Lento, burocrático, muitas vezes humilhante. Não uma vez esparsa. Sempre. Ligar 156 para obter assistência para uma criança sem casa, por exemplo – impossível. Ela precisa necessariamente ser criminosa para ser vista pelo sistema, aqui em Salvador.
O filme em si seria menos duro, se nós, se o Bug Latino, não ligasse para tentar ajudar sempre e ficasse sendo “interrogado” sobre se sabemos o que é uma pessoa ser “espancada” na rua. Será que há dúvida sobre o que significa uma pessoa ser espancada? É difícil de reconhecer?
Por isso, o filme é imperdível para, talvez – TALVEZ – sermos capazes de despertar um pouco mais de interesse humano em nós mesmos e não apenas dizer que no Brasil é assim mesmo e que não há outra forma de se viver, aqui.
Assistam, conversem, pensem. E homens: que vergonha. Quando as autoridades usam o poder que têm para menosprezar a dor do outro, elas podem simplesmente desaparecer da face da Terra porque só nos darão alívio. Portanto, "rolar um clima" é uma frase abjeta e nojenta sempre. É inadmissível termos que ouvir isso em 2022. Mas calar, nunca. Mulheres: olhem ao redor e não votem, não casem, sequer namorem ou fiquem com esse tipo de “espécime”. Homens machistas precisam se extinguir pela falta de amor, de sexo, de interesse humano.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Quanto vale um ser humano? Vale o mesmo que outro ser humano? Quanto esforço vale uma mulher? O que nos preocupa e o que não nos faz mexer nem os olhos? Somos seres, mas não sei se somos seres humanos, pensando no sentido que costumamos dar à palavra humano. Temos uma facilidade em deixar rolar o tempo achando que as coisas se vão resolver. E, se não for conosco, se não for algo que nos prejudica, nem estamos preocupados em resolver, em ajudar, em dedicar o nosso tempo, mesmo que dedicar esse tempo seja o nosso trabalho, a nossa profissão.
As mulheres. Acho que preferimos achar que o mundo vai mudando e vai nos tratando melhor, mas sabemos, bem no fundo, que está tudo na mesma. Uma minoria de homens que são seres humanos, corretos, justos, educados, não significa que o mundo, enquanto sociedade, mudou. Se as mulheres trabalharem na indústria do sexo, piora bastante. O homem ganha dinheiro com esse negócio, o homem procura essas mulheres, o homem não sabe se divertir de outra forma, mas quando um assassino, ou serial killer, provoca uma tragédia de mais de 90 mortes, ao longo de 15 anos, essas mulheres não têm valor, não valem o esforço, não são razão para, pelo menos fazerem o seu trabalho de policiais, de investigação, etc. Tudo fica sujo de repente. E encontrar o criminoso deixa de ser importante. Gente...
Um filme sobre histórias verídicas, sobre pessoas de verdade, sobre vidas iguais a tantas que conhecemos. Vidas que não estão bem mas que podem piorar muito mais. Um filme obrigatório para mulheres. Penso que precisamos fazer muito mais pelas nossas vidas, pelas vidas de todas as mulheres, sejam prostitutas, ou médicas, ou políticas. Cada mulher tem o mesmo valor que as outras e as mulheres têm o mesmo valor que os homens. Todos dizemos que sabemos isso muito bem, mas na hora de o demonstrar, o homem primeiro, em segundo, em terceiro...e sabemos que não está certo. Os homens também o sabem.
Atores e atrizes incríveis, com desempenhos muito intensos e emocionantes. As meninas novas, super talentosas. Uma trilha sonora forte, intensa, um roteiro que não te deixa relaxar um segundo, uma incredulidade que vai crescendo dentro de você, que o filme provoca espontaneamente.
A insistência, a persistência, a esperança, a coragem de uma mulher, mesmo com uma vida difícil. Um exemplo para todas nós. Que este filme possa estimular a nossa união, a nossa determinação, diminua a nossa cegueira e o "deixa pra lá" e nos faça agir para melhorar, de verdade, a nossa vida – uma vida justa é apenas o que desejamos.
Ana Santos, professora, jornalista
Sinopse: Quando a filha de Mari Gilbert desaparece, a inação da polícia a leva a uma investigação ao lugar onde Shannan foi vista pela última vez. Sua busca chama a atenção para mais de uma dúzia de trabalhadoras do sexo assassinadas.
Diretora: Liz Garbus
Elenco: Amy Ryan, Thomasin McKenzie, Gabriel Byrne.
Trailer e informações: