DOXA
“Sistema ou conjunto de juízos que uma sociedade elabora em um determinado momento histórico supondo tratar-se de uma verdade óbvia ou evidência natural, mas que para a filosofia não passa de crença ingênua, a ser superada para a obtenção do verdadeiro conhecimento” (Google Search).
Será que estamos chegando ao fato de que o trabalhador, antes, não tinha direitos e os conquistou para que anos depois, o sistema, a economia, o mercado, o dinheiro, os empresários tenham descoberto meios para arremessar as novas gerações num lugar ainda pior? Teremos saído das antigas fábricas sufocantes que tinham tão pouco a oferecer que ofereciam insalubridades variadas aos seus trabalhadores, nos Estados Unidos, para fábricas clandestinas que escravizam expatriados-refugiados?
Num momento tão desesperador do mundo, qual serão as novas formas de trabalho? A inteligência artificial herdará nossas burocracias, tentando criar meios menos estúpidos e lentos para tirarmos documentos? Além de frentistas, cobradores de ônibus, engraxates, relojoeiros, porteiros perderemos também advogados de causas simples para a INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL? Caminhamos para a sutileza da inteligência, ao mesmo tempo que do primitivismo absoluto da exploração do trabalho infantil? Da prostituição infantil? Não poderíamos talvez acabar com o que é criminoso, antes de iniciarmos a devassa no trabalho dos que não puderam estudar? No Brasil mesmo: antes de nos dedicarmos a exterminar profissões e a desqualificar os mais novos e os mais velhos, por serem mais novos e mais velhos, poderíamos educá-los primeiro? Dar-lhes primeiro e segundo graus de qualidade? Um curso técnico, talvez? Que espécie de evolução é essa?
Vivemos uma DOXA? Estamos, agora mesmo, achando que lutamos e que o trabalho melhorou, mas olhando o home office como um novo feitor de escravos? Que resposta daremos a nós mesmos, no “logo ali” do futuro? O mundo não está mais limpo, não perdeu refugiados, nem pobres, nem desajustados, há países onde ninguém recebeu vacina nenhuma contra a COVID, no Brasil caminhamos para 450 mil mortos com rapidez, na Índia há piras por todos lados, queimando, queimando, queimando... mortos. Isso é aquela evolução pela qual trabalhamos, com crianças que foram exploradas, mulheres que morreram queimadas, homens que caíram de prédios, sem cinto de segurança, sem equipamento, médicos, enfermeiras, motoristas que morreram de COVID? Tudo isso por só isso?
No seu emprego seguro, por quantos anos você vai ter que trabalhar mais e cada vez mais para poder enfim descansar? Caminhamos para o “cada um por si” pagando impostos. Para políticos sem políticas. Para eleição com muito barraco e gente falando besteira porque a “plateia ama ver sangue e acha estupidez uma coisa divertida”. Será reencarnação das arenas romanas? Nossos gladiadores disputarão por suas vidas metafóricas no Big Brother?
Perguntas... Não sei o que fazer sem elas...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Holanda. 1984. Nas cidades mais pequenas, as crianças, ali pelos 10, 12 anos, distribuíam jornais de porta em porta. De bicicleta ou a pé, bem cedo. O primeiro trabalho, as primeiras responsabilidades individuais. A partir daí as crianças e os adolescentes, eram estimulados a participar em todos os trabalhos voluntários que surgissem na cidade. E todos iam e todos faziam essas atividades com imensa responsabilidade e entusiasmo. Vários grupos de pessoas de vários países, no final do trabalho saíam para tomar uma cerveja e conversar. Para o grupo de holandeses, sempre vinha, no meio dos copos de cerveja, um copo de suco. 1984. O copo de suco era sempre para o amigo que, nessa noite, trazia o carro. Noção de trabalho, responsabilidade, divertimento. Quando terminavam a escola, todos tinham direito a um tempo sem ir para a faculdade, sem trabalhar, se não soubessem ainda bem o queriam fazer da sua vida. Um apartamento, um dinheiro e tempo para escolher e decidir se necessitassem. Claro que depois teriam de dar o retorno ao estado, mas um espaço e apoio inefáveis. Quando adultos, com o trabalho que escolheram, se nascesse um filho a mãe podia ficar um a três anos de licença e o pai 6 meses.
Portugal. Nos anos 80, quem não tinha licenciatura, tinha trabalhos mal remunerados, de horários e regras muito pesados. Menos férias ou nenhumas. Um futuro mais incerto. Quem tinha, o futuro seria e era ótimo. Século XXI. Cada vez mais pessoas têm licenciatura, mestrado, doutoramento/doutorado. Saem da faculdade para caixas de supermercados, para “callcenter”, para Uber, para vendedores de celulares/telemóveis, para empregados de lojas em Shoppings, para entregadores de compras e alimentos pela internet. E são tudo sorrisos porque têm trabalho.
Brasil. Bahia. Trabalhar no futebol, no voleibol, ser cantor, músico, produtor, ator, político, trabalhar na restauração, em hotéis, uber, marmitas, no turismo. No que der. Vender fruta no sinal/semáforo. Vender água, comida, no pedágio/portagem. Vender picolé/gelado, água de coco em qualquer canto da cidade ou do Estado da Bahia. O mesmo senhor que te vende água gelada, se o tempo virar e começar a chover, dali a 10 minutos, ele terá guarda-chuva para te vender. A mulher faz comida deliciosa em casa e o marido sai pela rua para vender. Pode ser também café, tapioca, canjica, mugunzá, na porta do hospital. Era sem máscara, mas depois da pandemia se instalar, é igual com máscara. A capacidade de adaptação de luta e de sobrevivência é impressionante. Um povo empreendedor que esta sempre transformando oportunidade em dinheiro, em sobrevivência.
Os holandeses são tão bem tratados pelo seu Estado/Governo. E existem mais países que o fazem. Afinal, o político deverá trabalhar para o povo, para dar as melhores condições a todos. Porque só em alguns países isso é preocupação? E noutros nada? É porque as pessoas aguentam? Porque elas, com o que têm, fazem milagres? E por isso, não necessitam de ter melhores condições? Para onde estamos indo? Cada vez mais vazios de conteúdo, de humanismo, de respeito pelos outros, damos cada vez menos aos outros, porque eles saberão “se resolver”?
Num mundo onde cada vez mais o trabalho é algo sofrido, desvalorizado, vazio, robotizado, fiscalizado, estamos perdendo os sorrisos, as amizades, as relações de carinho e confiança, as partilhas, a vida em conjunto. Quando alguém surge na nossa vida com capacidades para nos ensinar e nós preferimos excluir essa pessoa para não perdermos o nosso poleiro profissional, mesmo ficando na ignorância. Quando as amizades são construídas apenas para salvaguardarmos o nosso trabalho ou para conseguirmos cargos, trabalhos, salários, oportunidades.
São demasiadas linhas vermelhas que estão sendo passadas, esmagadas, esfumadas, direto a um buraco com consequências que não imaginamos. Não parecem grande coisa. Olho o céu e vejo muitas nuvens negras se juntando. Temo que venha aí um enorme temporal...
Ana Santos, professora, jornalista
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