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“Portugal, Chico e as gravatas” Bug Sociedade

“A CULPA É DA MULHER” Bug Sociedade
O Brasil é mesmo um País machista. Só mesmo num País assim, a vítima é acusada de ser culpada do próprio ataque sofrido. Mas não dá outra: “Ele não sabe porque bateu, mas ela deve saber porque apanhou; o cara passou a mão, mas você viu a roupa que ela vestia? Foi estuprada, mas com certeza deu mole; gente, homem é assim mesmo”.
Olhando para o dia da infâmia, o 8 de janeiro: se o golpe de estado tivesse dado certo, a culpa seria desse governo ou não haveria nenhum culpado e sim vencedores?
Mas o que me assombra, sobretudo: Que espécie de militares nós temos, pagamos, sustentamos?
Essa pergunta me lembra muito alguns pessoas que prestam concurso para a Polícia Militar e depois que são selecionadas, pedem às excelências – vereadores, deputados, senadores – que as loquem em lugares onde não existem bandidos violentos. Mas se o objetivo não era o de se arriscar para impor a ordem porque não fizeram prova para outra profissão?
O que vimos na Praça dos 3 Poderes entre tapinhas nas costas, aguinha e bate papo era “contenção de situação de terrorismo - à brasileira”. Resumindo: não sabemos se o golpe teria falhado, se a incompetência não fosse generalizada.
E falando em golpe, a incompetência dos golpistas foi fenomenal, também. Pararam para a tal aguinha, tentaram arrombar o caixa automático por 2 minutos, sem técnica e nenhuma paciência, fizeram cocô, rezaram e cantaram, quebraram tudo e de lá saíram quando afinal alguns policias de verdade - daqueles que sabem que sua função é impor a ordem - chegaram e os enfrentaram. Mas que espécie de militares nós estamos formando é a pergunta que vale milhões. Defender a Pátria deveria significar sobretudo aprender a respeitar a decisão do povo, quando vota; do contrário é ditadura, é prisão, morte e censura. No dia em que Portugal em festa comemora a Revolução dos Cravos e o fim da ditadura, de um lado vimos Chico Buarque sorrindo, com um discurso emocionado e brasileiro - cheio de brincadeiras, ironias e pequenas implicâncias - a nossa cara; Lula em momento inesquecível, dizendo que queria ser cantor, mas que Chico havia nascido e na outra tela, na próxima reportagem - eles - os militares brasileiros, de celular na mão - animadamente, talvez assistindo a "live do golpe".
Que coisa mais antagônica... Como pude achar os dois idosos muito mais heróicos que os jovens de uniforme preto, impecáveis e sorridentes? - até demais. Onde estaria a vontade de defender o Brasil? A democracia do Brasil? Nós, cara pálida!
Aí vem o tempero de leve implicância brasileira - mas é que dá uma preguiça de explicar...
Quanto uma boate paga por mês para um leão de chácara, daqueles fortões? Honestamente, acho que sai mais barato contratarmos esses caras. Pequenas fortunas para tantos militares que parecem não saber o básico para afinal só obtermos eficiência na pintura de meios fios e a marcha do 7 de setembro...
No frigir dos ovos, o medo que tivemos desde dezembro, com aqueles sucessivos ataques à democracia, foi mesmo medo – a gente imaginava o Bin Laden, um bandido inteligente, com boa formação e não o “seu Fulano” que aprendeu a montar bomba - e mal - pelo tutorial do YouTube.
O que afinal esses homens têm talento pra fazer? Fofoca. Nisso são campeões. Do mesmo jeito que “a culpa é da mulher”, “a saia estava muito curta”, todo aquele despreparo só podia ser nossa culpa, já que exigir democracia SEMPRE deve requerer características de personalidade “algo demasiadas”.
Ver militares oferecendo “aguinha” pro ladrão de caixa automático mal sucedido é demais. Isso não é caserna, desculpem – é caverna. E das escuras, bem trevosas de alta ignorância.
Resumindo: meu horror a camiseta amarela voltou!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
“Portugal, Chico e as gravatas” Bug Sociedade
Que emocionante ouvir os discursos do Presidente de Portugal, do Presidente do Brasil e de Chico Buarque. Para fugir da emoção, Chico Buarque dava umas gargalhadas soluçantes e contava a situação engraçada da gravata. Nem no filme mais aterrador ou mais cômico, era possível imaginar Bolsonaro a discursar naquela cerimônia. Chico Buarque teve razão, foi melhor nem sujar o diploma.
Sou uma pessoa de sorte. Tinha 8 anos quando a ditadura em Portugal terminou. Crescida o suficiente para sentir e perceber diferenças, mas nova demais para não ficar com feridas ou traumas. A ditadura no Brasil ainda não tinha terminado, já eu com 12 anos era atleta numa cidade, vivendo numa aldeia – meu pai fez esse esforço monstruoso por anos, de nos ir buscar às 23h30, na chuva e frio do inverno castigador do norte do país. Onde, meninas de 12 anos estariam na rua indo ou vindo do treino a essas horas se o país estivesse em ditadura? Isso foi decisivo na minha vida.
Pude escolher o que queria estudar. Pude escolher o queria ser como esportista, escolher os meus amigos, os meus amores, minha religião, minha cor política. Pude ser quem eu queria ser. Meus pais não me empurraram para nada, nunca me tentaram convencer de que existiam caminhos melhores ou mais rentáveis, nem nunca me proibiram nas minhas escolhas. Sempre percebi o valor que isso teve na minha vida. É que esse espaço, essa liberdade de escolha, a completa falta de censura, me fez voar. E voei para lugares inimagináveis, sem medo, sem travões, sem incômodos, sem pressa. Os cravos do meu país, dos meus e plantados em mim. É, afinal, tão fácil.
Emociona-me e inspira-me muito ouvir alguém cantar - cantar mergulhando por completo no fogo e encanto dessa ação. A voz é uma ave que não pode estar presa, nem limitada pelo controle de outros. A voz cantada tem implícita uma libertação que nem sempre somos capazes de deixar acontecer – em nós e nos outros que cantam.
Nas ditaduras, na repressão, as vozes não se soltam por completo, livres, limpas, puras – são mais gritos de pedidos de ajuda ou silêncio pesado ou sons automatizados. Com a nossa voz somos responsáveis pela manutenção de espaço físico e emocional democrático e livre. Canto, voz pública mas todas as ações humanas, motoras, emocionais, relacionais - que estão todas em qualquer forma de arte, na nossa cultura, no esporte.
A inspiradora história de vida de Husein Abdi Kahin, conhecido no esporte e no mundo como Mo Farah, pode ser lida neste artigo do expresso.pt. Deve ser lida, deve ser lembrada. Esta e todas as que pudermos contar. Também ele, sem nada, no momento em que teve um espaço de voo, “se lançou” e nunca mais parou. E vejam o que alcançou. Nos desesperados, sofridos, machucados, esse espaço para o voo é muito mais pequeno, curto, silencioso, tapado, mas sempre basta um segundo.
Dar espaço aos outros, iluminar seus espaços de voo, cuidar dos nossos. Não prestar muita atenção às alturas, mas sempre procurar espaço e prestar muita atenção ao voo. E agradecer por tudo e pela sorte. Ser portuguesa e poder viver no Brasil em liberdade e em democracia é como um voo. Um voo que quero que dure, dure, dure...
Ana Santos, professora, jornalista