As pessoas parecem esquecer, mas todas as civilizações nasceram da África, a grande ancestral da vida e da nossa raiz humana. Por algum motivo estranho e sem justificativa, isso não é usado como uma partida de glória e conquista. Muitas vezes nem é mostrado pela história como ponto de partida, o que parece apartar as cores da pele, não como uma adaptação ao clima e ao sol, mas como se houvesse um tipo de “status da cor” que é absolutamente incompreensível diante da força e influência do clima sobre a nossa resistência. Mas se há um começo, ele parte daqui.
A cor denota resistência maior ou menor às inclemências do sol e os brancos são mais frágeis quando expostos, é fato. Mas como resistência e pujança = poder viraram resistência = aprisionamento e exploração é uma questão que acompanha a nossa vida e que precisamos entender, explicar e aceitar que não pode mais ser visto dessa forma.
Os refugiados lá estão sendo proibidos, espezinhados e torturados pelo frio do norte – são brancos e o preconceito vai atrás deles. Na África não chega vacina, embora o mundo inteiro saiba que todos precisam estar vacinados para que possamos equacionar nossa vitória sobre a pandemia. Na fronteira com os Estados Unidos são haitianos chicoteados e impedidos de a cruzarem e no Brasil – claro que no Brasil – a polícia atira nos negros, enquanto os posseiros, na floresta, matam indígenas na nossa cara, dentro do nosso território.
Há pessoas mais fortes do que aquelas que sobrevivem “apesar de”? Por que então elas são sempre as mais violadas, importunadas, punidas pelo fato de insistirem em existir?
Se nós ficarmos apenas apontando problemas históricos isso nunca vai mudar porque nunca mudou. Temos agora que agir com mais energia. Precisamos ser todos nós os novos ABOLICIONISTAS. Ativos. De todos e para todos porque liberdade não pode ser um processo para alguns. Motivos sempre serão inventados por quem quiser justificar a deturpação de sua forma de olhar. Mas não podemos mais permitir que o olho doente pareça ser aquele que vê melhor porque calamos.
O meio ambiente aponta para o resultado de uma administração apenas exploratória. O nome exploração faz parte da forma como alguns veem o trabalho, a vida, a economia. Mas eles estão errados e nós podemos falar, denunciar e participar de uma defesa que não se omite apenas diante do refugiado da vez. Se ele for eu, for você, for todos nós, os governos vão ter que discutir a ocupação da Amazônia pensando nas pessoas e não nas vacas, não nos pastos. O ouro é a mata e o nativo. O ouro somos nós como coletivo humano.
Urbanamente estamos vendo a mesma ação de predadora, “favelizadora”. Isso não é esquerda, nem direita; não é comunismo, nem conservadorismo; é “humanismo predatório”. Que espécie possível de governo pode desonrar os mais pobres e ser aceitável para quem quer que seja? Pode empobrecer as escolas e o ensino, na tentativa de que nem todos estudem? Eles vão institucionalizar as castas e nós vamos ver os mais pobres cada vez mais pobres, com estudo pobre, escola pobre, saúde pobre, segurança pobre e deixar? Vamos “zapear para o próximo canal”?
Esse estranho preconceito pode ser combatido no mundo inteiro e nós podemos fazer isso ao não admitir ver essa fobia, esse exercício de doença contra o diferente, seja ele qual for.
Que tal um coletivo mundial de ABOLICIONISTAS, na vanguarda da proteção do nosso coletivo humano? Não africanos, indígenas, árabes, judeus. Não um coletivo de pobres, desonrados e abandonados. Um coletivo maior, onde caibam todos; o nosso coletivo. Humanos.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Sou portuguesa. Sou branca. Vivo com um nó na garganta, desde 2013. Desde que vivo em Salvador, Bahia. É um nó que não se desfaz. Um nó que por vezes me sufoca. Muitas vezes me faz chorar. Me envergonha. Deveria ter sabido mais da história de Portugal? Do Brasil? Da Bahia? Não deveria ter vindo? Como posso contribuir? Deveria aceitar quando me dizem que na época era assim? Isso quer dizer que na minha época também é assim e tudo o que está errado devo deixar acontecer? O que se faz quando o nosso enorme orgulho à pátria se confronta com uma enorme e incómoda vergonha? Cada pessoa afro-brasileira que conheço, carrega uma dor misturada com um enorme orgulho de si e do seu povo. A minha vergonha e meu orgulho e a sua dor e o seu orgulho tantas vezes se encontram e não sabemos como reagir uns com os outros. Confiamos? Desconfiamos? Demoramos a conectar. Umas vezes isso não é nem possível. Uma enorme lama nos separa e parece não secar nunca.
Visitar alguns Terreiros de Candomblé, na Bahia, é uma honra tão grande que não cabe em palavras. Tinha medo de ir. Tinha muita vergonha. Não sabia se devia ir achando que poderia “invadir” com a minha cor e a minha raiz um lugar tão sagrado. Me trataram tão bem... E a vergonha do passado parece aumentar. À chegada, um copo de água para “alinhar a sua energia com a do lugar". Nunca imaginei tal cuidado. Na primeira vez, agradeci, mas não quis. A menina insistiu. Para não ser desagradável bebi um pequeno gole – água gelada não é minha “praia” e aqui todos amam. A menina ficou ali, docemente e pacientemente, aguardando que eu tomasse o copo todo. Eu não queria, não sabia. Depois aprendi que a minha gentileza em recusar era, afinal, uma enorme indelicadeza.
Visitar um Quilombo, é talvez a maior honra que uma portuguesa pode receber. Não para filmar, não por formalidade. Convite de amizade. Lugares sagrados para onde os escravos fugiam. Onde se escondiam do sofrimento causado pelos colonizadores. Pelo caminho, na fuga, iam encontrando comida deixada nas encruzilhadas pelos que já tinham fugido e viviam ali. Lugares mágicos, onde poucos para além dos nativos, têm acesso. Não sei se alguma vez vou conseguir ir. Minha vergonha e meu respeito pelo que viveram seus familiares me impede. Como pisar um lugar sagrado desses, como ter esse direito? Se for capaz, talvez eu vá um dia para chorar toda a tristeza e vergonha que guardo, para pedir todas as desculpas que meu povo ainda não pediu e que eu preciso pedir. Para ajudar a secar essa lama que nos separa. Para tentar contribuir com algo de mim. É impossível não reparar na riqueza espiritual, musical, artística, culinária, sensorial, da população negra, dos Afrobrasileiros. E os que mais mantêm a memória do passado sofrido, mais nobres e enriquecidos são. É inegável o impacto das suas vozes sensatas, doces, serenas, carregadas de palavras sábias. Quanto mais baixa a voz, melhores as palavras, mais profunda a mensagem.
Tenho aprendido muito e certamente sou melhor pessoa desde que conheço Rafael Sanzio, Anita Canavarro, José Carlos, Fábio Velame, Alice Silva, Alexandre, Romilsson, Jaciara, António, Carmen, Bergon, Ogbá, Deusimar e tantos outros. A todos e aos que virão, a minha gratidão, as minhas desculpas, o meu pedido de perdão. Continuem por favor a me deixar melhor pessoa, continuem por favor a mostrar o caminho que pode secar esta lama que nos separa.
Ana Santos, professora, jornalista
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