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Conto do "Livro Aberto"


Ela olhava Washington em guerra, as pessoas correndo de um lado para outro e tentava lembrar páginas de um livro mental que pudesse explicar o que era aquilo. Quando aquilo tinha começado?


O fato é que as pessoas não queriam mais dividir nada. O ditado assustador da sua infância –“Os egoístas morrem sozinhos” – simplesmente não existia mais. Companhias são facilmente compráveis em lugares onde se vende tudo: alma, corpo, mente e emoção.


A polícia começou a reprimir com agressividade o que acontecia e os manifestantes – aquilo era mesmo uma manifestação? – continuaram quebrando e tentando invadir e depredar salas. Que tipo de pessoa confunde liberdade de expressão com quebra quebra, tiro e confusão?


Ela se escondeu atrás de uma mesa porque as cadeiras voavam por cima de sua cabeça. Não podia ir, nem vir. Que espécie de liberdade é essa? Dentro de sua mente, a solidão absoluta, nascida do estresse total, do estado de sobrevivência. Lá estava aquele senador... seria ali um deputado? O caos os havia colocado em pânico, assim como ela. Respira devagar, seu pensamento lhe estimulava.


Bandeiras usadas como armas de ataque, de guerra, de provocação. Discordar é a razão do conflito ou quem não sabe discordar os provoca? Ela estava tão imóvel que parecia tranquila, embora se sentisse congelada, paralisada.


Sem nenhum movimento afora as lágrimas, ela ali ficou atrás da mesa por horas. Viu corpos caírem, viu sangue, morte, luta. Quando ela entrou no Capitólio era uma jornalista fazendo uma cobertura política. Ali, deitada atrás da mesa, com os olhos parados, as lágrimas escorregando devagar e tocando seus medos infantis de ser esquecida, de não ser uma filha verdadeira – ela era mesmo tão diferente das irmãs – percebeu que tinha virado uma testemunha da história. E depois da desonra extrema, da perda absoluta da razão, do foco e dos limites... a lucidez parecia se alastrar pelo seu corpo imóvel, sobre aquele tapete verde e azul.


Naquele momento – ela poderia estar enganada? – Naquele momento, os negros da Georgia tinham conseguido se sobrepor aos supremacistas brancos que, loucos, descontrolados, tentavam reverter à força o que a democracia tinha levado séculos a urdir. A águia da liberdade tinha sofrido um atentado de alguma forma mais grave do que o das Torres Gêmeas e ela viu tudo, é verdade. Mas havia um grito para além do que os sulistas enxergaram. Geórgia... Georgia... que música...


Gás lacrimogênio e mais lágrimas – ela não sairia detrás daquela mesa nem morta. Ela era sua última segurança visível.


Tic tac, tic tac... aquele enorme ruído queria muito tentar ser silêncio. Seu olhar buscou alguém, viu seu câmera engatinhando em sua direção. Que momento, que horror... Abraços. Soltar os cabelos? Dá pra entrar no ar agora, sim!


No fim do ao vivo, a pergunta que lhe queimava o coração era: liberdade é isso mesmo? Invadir, atirar, matar ou ser morto como se fosse uma guerra irracional, como um ódio existencial, quando o ponto era aceitar a escolha feita?


Os olhos se apertaram, ela suspira, ajeita os cabelos mais uma vez. Ao redor, morte e uma história de democracia com uma mancha bem na vitrine da frente.


Respira devagar. Um suspiro além. Entrar outra vez. Vida que segue. Mas...


Mas...


Mas...


Georgia.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro, TV


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