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“Conto da menina comportada”


Ana era uma menina comportada. Muito comportada. Penso que até medrosa. Tinha muito medo de fazer coisas erradas. Por isso, a maior parte das vezes nem apreciava a vida. O mundo era um lugar onde estava sempre atenta ao que devia fazer e sempre evitando o que não devia fazer. Vivia obediente, certinha, bonitinha. Se lhe perguntavam se queria alguma coisa, ela respondia de acordo com os medos. Se fizer isso, posso ter problemas? Não obrigada, não me apetece não. Se fizer isso não é problemático e até pode agradar os meus pais, a minha família e me dar “créditos”, para momentos de falha? Obrigada, aceito sim!


Cada um vive guiado por um sentimento. Ela vivia guiada pelo medo. Nunca lhe fizeram mal, nunca a trataram mal, mas de alguma forma ela interiorizou que fazer coisas “erradas”, era muito mau e algo de muito mau iria acontecer depois disso. Não sei se era a enorme imaginação que tinha junto com esse medo, que a colocavam em quase pânico do que poderia acontecer se algo de errado ela fizesse. Não sei se era a forma educacional da época, com comentários constantes por todo o lado de, ai meu Deus se fazes isso, ai se o teu pai sabe, vais ver o que te acontece quando eu falar com a professora, olha que aqui tem um senhor que leva as criancinhas que se portam mal, etc, etc, etc... Existe um lugar em Portugal chamado “Venda das Raparigas”. Sempre que passava de carro por esse lugar, algum adulto ou todos os que iam no carro comentavam que se alguma das crianças se portasse mal, quando voltassem e passassem naquela terra, ela seria deixada para ser vendida. Você deve estar a rir às gargalhadas, rebolando pelo chão, pelo ridículo das situações. E está certo. Mas, Ana, vivia em medo. Ela confiava nas pessoas adultas e tudo o que elas falavam era certo e era “A Verdade”. E tudo o que elas afirmavam para assustar e travar um pouco as crianças mais desafiadoras, aterravam Ana.


No início da adolescência ela estava inserida numa turma muito rebelde. Imaginem só a menina que tudo obedecia, junto de colegas que amava, mas que em vez de estudarem iam fazer tudo o que, no mundo dela, era errado. Nas aulas também eram contra todas as regras, enfrentavam professores, etc. Eram verdadeiros terrores. Ana lá andava, estudando, cumprindo. Mas começou a faltar a algumas aulas por medo dos colegas a excluírem quando faltavam e ela não. Mas por outro lado a ficar com medo que o pai soubesse e a castigasse retirando algo que ela gostava de fazer. Andava muito preocupada e com mais medo ainda. Um dia, numa aula de Geografia, a professora atrasou. A turma entrou toda na sala e era a loucura. Uns em cima da mesa da professora, outros correndo por cima das mesas dos colegas, outros gritando, outros rindo. Ana ficou com mais medo ainda. Aquilo não ia terminar bem e ela não podia de forma nenhuma fazer algo errado. Andava sempre com um “Ioiô” no bolso, nessa época. Tirou o “Ioiô” e, sentada na sua cadeira, aguardando que a confusão passasse e a professora chegasse, brincava com o “Ioiô” tranquila. De repente ouve: “- Ana, rua!” umas duas ou 3 vezes. Uma colega toca no ombro dela e lhe diz: “ - A professora chegou...” Ana, estava tão focada no que estava a fazer que nem se deu conta que a professora tinha chegado, tinha ordenado que todos se sentassem, se calassem e furiosa com tudo e todos, ao ver que Ana continuava a brincar calmamente com o “Ioiô”, ordenou que saísse da sala. Na época era a punição apenas para os mais indisciplinados, os mais terríveis, os mais rebeldes. Ana ficou sem entender. Tentou explicar à professora porque estava fazendo aquilo, mas a professora nem deixou falar meia palavra, furiosa. E assim, sem poder explicar, se justificar e sem ninguém da turma para a salvar – o silêncio era gélido – saiu da sala destroçada. Ana, guardou para sempre o som daquela porta da sala se fechar e o som dos seus pés caminhando no corredor vazio, sem destino. Na sua cabeça tinha só luzes vermelhas acesas e a piscar. Como tudo aquilo aconteceu? Como o castigo foi para ela? Como explicar isto ao mundo e aos pais? Ninguém iria acreditar que ela tinha razão, nem que não fez nada de errado. De alguma forma os pais acreditaram na versão dela, afinal era sempre tão certinha. As irmãs também ajudaram a acalmar o coração dos pais. Mas a sua reputação nunca mais foi a mesma. Nunca mais gostou daquela professora. Faltou as vezes que pôde aquelas aulas. Foi a primeira vez que teve nota baixa numa matéria e geografia passou a ser uma disciplina pouco interessante para sempre na sua vida. É, a vida tem umas coisas...

Ana Santos, professora, jornalista

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