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“As primeiras borboletas do dia” Bug Sociedade


Quando a madrugada finda, lá vão elas, do subúrbio, da periferia para as zonas mais abastadas. As borboletas acordam e ainda não há dia, em muitos dias, em muitas estações. Voando contra o tempo, mais parecem mariposas procurando as luzes artificiais da cidade porque sentem medo e o enfrentam todos os dias. De onde voam, a polícia tem formas diferentes de agir. Batem primeiro, revistam sem cuidado. Pedir, conversar, nem pensar. Mas lá vão elas assim mesmo. Bolsa apertada debaixo do braço, num passo a passo discreto.


Lá pelas 7 da manhã, as ruas estão tomadas delas, que criam grandes movimentações nos bairros onde passam, em busca de ajudar pessoas em suas casas, perdidas entre afazeres que por algum motivo não são feitos, embora pudessem ser feitos ou pelo menos adiantados. Mas que nada – as borboletas esvoaçam e lá vão, arrumadeiras, colocando as coisas em seus lugares, lavando a louça de ontem, enchendo a casa de aromas.


Muito embora devessem fazer parte de uma família, já que derramam cuidados como pólen, muitas vezes as famílias não as veem como deveriam. São uma espécie de borboletas muitas vezes invisíveis, embora a roupa cheirosa, lavada e passada, louça cuidada e casa arrumada sejam testemunhas oculares da presença de seu voo. Mas nem todos perguntam, se interessam. Muitas vezes quase ninguém. Muitas vezes quase nunca.


Em seu voo diário, deixam para trás seus filhotes para cuidarem dos filhotes dos outros. E trazem, em sua presença diária, perguntas difíceis de responder. Porque não são nunca exatamente os mesmos direitos, embora as famílias visitadas pelas borboletas de algum modo estejam relacionadas.


Não importa. Seu voo diário, de segunda à sábado, independentemente do que haja ou aconteça lá está para iluminar, organizar e limpar os dias.


A sociedade lhes dá valor quando faltam. Um valor estranho para um trabalho incessante e necessário. Se a casa com mais dinheiro quer ou deixa, as borboletas falam e brincam; se não, ao invés do voo despreocupado, lhe restam respostas à perguntas: limpou, passou, arrumou, fez, guardou, lavou? E a borboleta voa por toda parte.


No fim da tarde, na condução, há nuvens de borboletas rumo ao subúrbio, à periferia. Ainda dará tempo de jantar e ver seus próprios filhotes, numa rotina nua.


A sociedade nem percebeu que elas também tinham direitos até “ontem”. A sociedade tem dificuldades de aprendizagem e como as crianças, precisa da experiência do pôr-se no lugar do outro. Porque não é fácil voar. Que dirá todos os dias, com chuva, com sol ou com greve. O status quo reclama do que fizeram ou deixaram por fazer; mas a inexperiência, a falta de autonomia dos que lhes pagam reafirma a incapacidade de sobreviver de quem as paga.


Numa sociedade justa, todos poderiam voar com independência. Mas aqui, aqui há algo doente na pia cheia de louça suja, que espera por sua borboleta trabalhadeira porque parece que não existem outras mãos para tocá-las, lavá-las, guardá-las.


Mas sem seu voo matutino, as cidades seriam diferentes. Mais tristes. Menos movimentadas e com menos esperança. Porque todas as borboletas sonham voar pra outros lugares porque existem flores em muitos lugares. Mas para elas, não. Sua destinação é sempre o mesmo lugar, com as mesmas dependências e falta de espaço pessoal confortável.


Justiça social? Nem sabe o que é isso. No jardim há muito pouca. Mas lá estão elas, à caminho da flor.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Bem cedo, o sol nasce por aqui. O silêncio e o vazio dominam as ruas enquanto o dia abre as persianas e tudo recomeça mais uma vez. Neste preciso momento, neste pequeno instante não existe mais ninguém na rua. Apenas as primeiras borboletas do dia. Parecem seres de outro lugar. Talvez sejam. Não te olham olhos nos olhos como se não tivessem permissão, como se estivessem em alguma jornada espiritual. São graciosas, adequadas, silenciosas, serenas. Seu caminhar é diferente de todos: pisam sem fazer barulho, com cuidado, para não incomodarem, não serem estorvo. Ao mesmo tempo sentimos uma força indestrutível, uma energia preparada para ser gasta em todos e em tudo o que for necessário. Preparadas e dispostas, não interessa o que sentem nem o que vai dentro delas e do seu coração. Algo que me emociona até hoje. Que me espanta. Que me dilacera. São os alicerces de uma cidade, de um país. Educam, organizam, alimentam, estão presentes, nunca falham. Mas não pertencem. Nunca pertencem. Não merecem? Vem uma pandemia que deixa todos assustados e são as primeiras a ser descartadas... A pandemia permanece e são chamadas de novo. Sim e não. Não podemos ter a vossa presença aqui em casa porque é muito perigoso. Lamentavelmente temos de a dispensar. Pera, pera...vocês precisam voltar porque isto aqui está uma enorme confusão e assim não dá...


Se alguém da casa ficar com Covid19, quem será apontado como disseminador? Borboletas frágeis...


Quem não cozinha ou nunca administrou com suas mãos uma casa, faz ideia do trabalho que aumentou com a pandemia? Faz ideia dos cuidados que são necessários quando a casa é pequena? É grande? Tem muitas pessoas vivendo nela? Tem pessoas doentes? Em vez de respeitar a forma como cada um e cada casa cria normas novas não fique dizendo que é um exagero. Que também não é preciso tanta regra e proibição. Temos tanta facilidade em falar dos outros e do que os outros fazem e não fazem. Nós afinal só queremos é ir, sentar e comer. Ter um sênior a recuperar de uma cirurgia ou ter uma sênior que acabou de sair do hospital ou alguém extremamente importante ter morrido, não é importante. Importante é poder continuar a ir, sentar, comer. Como se as borboletas não envelhecessem, como se o tempo não passasse, como se a vida fosse um conto de fadas. As borboletas também sentem, observam, têm opinião, emocionam, pensam, apesar de nunca falarem. Ai, ai, se elas falassem... Mas como não falam as máquinas trituradoras continuam seu caminho, anos após anos, falar, chegar, sentar, comer. Nem quando a rainha das borboletas morre. Nem aí.. Não conseguem deixar de querer chegar, sentar, comer. Como vai ser este mundo se um dia as borboletas morrem todas? Ou se cansam? Ou se revoltam? Ou decidem falar?


8h de trabalho que não sei se podemos chamar trabalho. Acordar uma casa, servir o café da manhã, preparar o almoço, deixar o jantar pronto, aos sábados deixar as refeições até domingo de noite preparadas, fazer camas, tratar da roupa para lavar, passar a roupa a ferro, levar o cachorro a passear, ter sempre um sorriso, sempre disponível para o que surgir. Casas, apartamentos, vidas, futuros, gente que domina a cidade e o estado, todos dependem delas. Quando estão são apenas uma peça que está no lugar. Quando ficam doentes e não podem ir trabalhar – algo que não pode acontecer - tornam-se um grave problema na casa.


Vivem marcadamente duas vidas. A sua vida em casa que precisa estar bem organizada antes de sair. Cozinham ainda pela noite deixando tudo encaminhado para todos e no final do dia quando chegam exaustas são ansiosamente aguardadas por filhos, marido, pais para alimentar, roupas para tratar e tanta coisa ainda para resolver. Sua outra vida toma seu tempo. É a sua sobrevivência e a de todos, mas não lhe deixa um tempo nem para sentar, fechar os olhos, olhar o sol, beber um copo de água. Nesse lugar não é pessoa, não pode ter sentimentos, não pode ter uma dor, uma emoção, um problema, uma exaltação. Tem ouvidos mas não tem boca. Quanto cada um era capaz de aguentar? Quantos minutos, horas, dias, anos? Borboletas, borboletas, temos tanto a agradecer, a aprender, a ajudar...


Sonho com o dia em que as primeiras borboletas do dia sorriem, olham nos olhos como iguais e caminham com alegria porque vão para onde gostam de estar...

Ana Santos, professora, jornalista

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