Anne Heche
De quais sofrimentos ela fugia? Que dor enorme ela sentia?
Há anos, conheci o trabalho de Anne Heche, em Ally Mcbeal – uma série incrível, louca, da qual não perdia nenhum episódio. Lá no meio daquele elenco inovador, lá estava ela. E depois, namorando Ellen DeGeneres e terminando a relação num momento bem difícil. Ali, o frescor dos olhos dela se apagou, de alguma forma que nunca ninguém soube explicar. Teria sido por causa do preconceito? Afinal DeGeneres relata enorme sofrimento, portas fechadas, cancelamento de contratos. De Anne... muito mais silêncios, que respostas.
O que nos leva à resposta mais comum aos sofrimentos silenciosos - a facilidade com que as drogas estão cada vez mais disponíveis. Para Anne, cocaína e fentanil; para os meninos abandonados que vemos perambulando na cidade, crack. E com poucos anos de vida, numa condenação ao nada, ao analfabetismo, à marginalidade e inexistência civil absoluta. Zumbis invisíveis.
Como ajuda-la? Como ajuda-los?
Para Anne Heche, nem seu talento dramático incrível – visto pela última vez em Chicago PD – adiantou. Visivelmente havia uma nuvem que lhe toldava o olhar há anos e lhe traía em todos os filmes.
Os meninos da cidade... não parecem ter ninguém que se compadeça deles. Eles não têm documentos, não têm pais visíveis, não estudam, não têm futuro possível e nós, os cidadãos não sabemos a quem procurar. Como tirar documentos quando o menor não tem responsável visível? O que fazer de um menino andarilho de 11, 12 anos, viciado em crack, sem nenhuma educação, que lhe chama de “tia” e lhe oferece suas laranjas e tangerinas, apenas porque é criança e aceita qualquer carinho, qualquer tentativa de socialização? Por outro lado, o que fazer quando a pessoa – como Anne Heche e o menino – não aceitam ajuda?
Há muitas dores sufocadas e sufocantes, aqui. Mas todas elas precisam falar com alguém. Os cidadãos também – porque querer ajudar é muito diferente de saber como fazê-lo. Sinceramente, portanto, não é mais possível fingir que não enxergamos o sofrimento nos olhos das pessoas, quando as vemos – perdidas, perambulando por aí.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
“Fugir da dor” Bug Sociedade
Todos temos o mesmo perante nós - o tempo. Todos temos algo que não sabemos o que é, mas que ao olhar o relógio com os ponteiros caminhando, contabilizamos, subdividimos, categorizamos. É algo que caminha, algo que não somos capazes de parar, que não tem repetição, nem substituição. Esse algo, que chamamos tempo, estava aqui antes de chegarmos e estará depois de irmos. Na nossa verdade, estará aqui para sempre. Nós é que somos os efémeros, os visitantes, os passageiros. Todos estamos vivos, ou achamos que estamos.
Anne Heche, 53 anos, atriz de Hollywood, morreu após um acidente de carro. Estava sob o efeito de drogas – cocaína e fentanil. O usuário de cocaína tem uma sensação de poder, força e euforia. Fentanil, a droga que também matou Prince, tem a potência analgésica 100 vezes maior do que a da morfina. Fentanil e outros opióides são hoje uma epidemia, uma calamidade, em S. Francisco (E.U.A.). O Youtube tem vários documentários sobre o caos humano que ronda as ruas da cidade. Todos estamos vivos? Mesmo os famosos, os ricos, os que parecem ter sucesso, buscam formas químicas e artificiais de sentir bem estar, alegria, energia e/ou de se anestesiarem e não sentirem dor, angústia, ansiedade, medo, insegurança, etc.
Anne Heche parece ter sido “marcada” socialmente quando se separou de Ellen Degeneres, também “marcada”. Viver abertamente a homossexualidade, a velha homossexualidade, incómodo dos “perfeitos” seres humanos à face da terra! Anne desapareceu. Coincidência ou não voltou a surgir no “Hollywood famoso” após casar com homens e ter filhos. Ellen Degeneres conseguiu atingir a ribalta durante muitos mais anos e agora, aparentemente, fez algo muito errado. Ou será de novo a necessidade de a “apagar”? Não sei, não sabemos e nunca saberemos.
Salman Rushdie. Um homem marcado por uma “Fatwa” – a condenação à morte por escrever um livro. Assistir a uma das suas entrevistas que circulam no Youtube é uma benção para o espírito. Um homem culto, de pensamento claro, com uma capacidade de explicar o que sente, o que sabe e o que pensa, como poucos. Um ser vivo, verdadeiramente vivo. Sua droga é escrever, ler, saber, tentar entender o mundo e o ser humano. É impressionante ouvi-lo, profundamente impressionante! Seu equilíbrio e sua busca de entendimento do mundo e do que sofreu durante anos foi quase sempre procurado nos livros: “A Cabana do Pai Tomás”, de Harriet Beecher Stowe, as fábulas antigas indianas, Montesquieu, Voltaire, Diderot, são alguns exemplos. Eu me pergunto que livros leu o homem que o esfaqueou...o que é o tempo e que nível de tranquilidade existe numa pessoa que faz algo assim? Eu me pergunto que livros leram e leem, por exemplo, os membros da família Bolsonaro, seus amigos, seus seguidores? Talvez considerem que sabem tudo e que não existem pessoas, nem livros dessas pessoas que os possam enriquecer, interiormente. Que livros leem as pessoas que matam a tiros indiscriminadamente, depois de uma discussão familiar? Quem acha que tem direito a decidir com quem os outros casam ou que vida escolhem, o que leu? Salman Rushdie buscou pessoas que passaram por situações semelhantes à dele e tentou saber como fizeram, como buscaram a saída, a salvação, a serenidade, a aceitação. Maya Angelou é outro exemplo impressionante de cura pela literatura, uma mulher negra que se tornou uma inefável referência eterna para a humanidade.
Perante nós o tempo. Perante nós a possibilidade. Anne Heche sofria por dentro, só alguém sofrendo muito está sob o efeito de algo – droga, álcool, consumo, comida, jogo, poder, inveja, ambição, etc. Salman Rushdie sofreu por fora e se protegeu por dentro com a leitura, com a cultura. As facadas podem até matá-lo – desejamos muito que não – mas nenhuma facada lhe tira a riqueza que construiu por dentro. Perante nós o que não pára, o que existirá para sempre, o que permanece, o que tem consistência, que tem lastro. Perante nós o que fazer a cada momento. Perante nós o universo nos chama para uma dança eterna e edificante. Perante nós, nós...
Ana Santos, professora, jornalista
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