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“ABRIL RIMA COM BRASIL(?)” Bug Sociedade

Tanta coisa aconteceu aqui, no mês de abril. Os portugueses aportaram no dia 22, Tiradentes foi enforcado no dia 21 e, principalmente, no dia 19, falamos, lembramos dos povos tradicionais da floresta, de nós e da nossa essência sábia, nativa, no dia do índio. Que Brasil vai nos sobrar para as próximas histórias não sabemos ainda, mas somos um País que não consegue se ver como parte da ação histórica que acontece aqui. O Presidente “não é responsável” pelas ações nacionais de combate à Covid, tanto quanto aquele que fala mal, que destrói reputações pela internet não se sente responsável pelo suicídio, pelo sofrimento, pelo isolamento de pessoas.
Não somos um País dado a ter heróis – talvez pelo fato de termos sido sempre agressivos, sempre assassinos, sempre violentos uns com os outros. O mal aqui se corta com tiro, facada, tortura, prisão injusta e num País assim, não há muito espaço para os heróis – eles são “morridos, matados, suicidados”.
Se Tiradentes de fato foi herói – ou anti-herói – não sabemos – a história do Brasil é perniciosamente mentirosa. Mas não devo ser a única a suspeitar de um militar como o alferes Joaquim José da Silva Xavier ser morto fantasiado de Jesus, quando sabemos que os militares têm uma disciplina que não permite até hoje cabelos e barbas daquele tamanho. Nem vou chegar ao camisolão porque aí é expor minha inteligência ao ridículo.
Qual seria a explicação para refratarmos a ideia de que nós – e nós desde os povos tradicionais da floresta – somos os verdadeiros heróis? Há muita dor e muito sofrimento em nos mantermos altivamente irônicos depois de 500 anos de sucessivos abusos e humilhações. Em aguentarmos firme quando os brasileiros um pouco menos mestiços (se é que mestiçagem tem gradação) afirmam que os cariocas são preguiçosos e os baianos são indolentes e que o Sudeste é cheio de paraíba e respondermos tão somente: “É falta de praia, gente. Uma água de coco ajudava”. Não tem ninguém melhor do que ninguém, aqui. Porque aqui é favela à céu aberto. É esgoto sem canalização. É falta de vergonha com ou sem colônia e colonizador pra justificar a miséria. Não tem carteirada que oculte a verdade interior que precisamos admitir.
No mês de abril, lá vem o Brasil, descendo a ladeira. E muitos brasileiros ainda olham o horizonte em busca do herói, do mito, daquele que vai operar milagres. Ahn? Ainda nessa?
Olhem para uma onça, um angelim, olhem pra uma mata e ousem dizer que não é bandidagem uma empresa, uma pessoa, um político matar, cortar e queimar qualquer um destes que são os verdadeiros mitos de um povo que nasceu da floresta e que vai morrer se a perder. Algum idiota acha que se pode trocar sem custo adicional uma floresta por um pasto? A culpa é dos portugueses? De novo? Nossa Senhora, que tudo o que acontece de ruim aqui a gente ainda joga a culpa neles...
Cá estamos nós, 521 anos depois. Se olhem bem no espelho das ações passadas. Como nós podemos impedir que qualquer governo afete, interfira no funcionamento do futuro? Resposta simples: Não permitindo que se destrua a floresta e os povos originais. Com eles está o saber que pode ou não ser passado adiante. Quem é o completo idiota que quer trocar conhecimento milenar por uma vaca? Não precisamos, nunca precisamos e nem nunca precisaremos de novos “Tiradentes”. Não precisamos de mitos. Nós somos os heróis porque é a nossa história. Chega de idiotas messiânicos por todos os lados.
Eu sou índio. Eu nasci do tupi-guarani. Eu sou a mata. Eu sou Brasil.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Cuspimos muitas vezes para o ar, dizemos vezes demais “desta água não beberei”. Achamos muitas vezes que “temos o Rei na Barriga”. Vivemos distraídos e preocupados com nosso umbigo, às vezes a vida inteira. A vida é implacável. Ela nos coloca nos lugares, nas situações. Não adianta muito fugir. Só muda o jeito, o dia e a forma como teremos de aprender. E nessa hora, desejo muito que todos saibamos ser humanos e melhores do que muitos no passado.
Conhecer a história de vida de Tiradentes, herói brasileiro e dos povos tradicionais da floresta, me inquieta, me envergonha, me deixa com muitas perguntas e a procura de muitas soluções. O que cada um de nós faria no seu lugar? Se omitia porque conseguia sobreviver e portanto não era nada com você? Ficava com medo e vivia sem dignidade? Aceitava ser explorado na sua própria terra, para não criar problema porque afinal a vida e os tempos eram assim? E se fosse vizinho de Tiradentes e do povo tradicional da floresta? O que diria? Lá vai ele de novo se armar em corajoso? Esse cara pensa que é quem para enfrentar o poder? Esse cara é descontrolado, vai acabar sozinho? Não sabe aceitar a realidade e aproveitar de alguma forma o jeito de ser desta vida?
Sabem? Num dos nosso programas, o 12x12, eu pergunto sempre ao convidado com quem ele deseja falar, por um instante, se fosse possível. Eu, hoje, gostaria de poder falar com Tiradentes e com os povos tradicionais da floresta. Pedir desculpa. Poder lhes dizer o quanto os admiro e da culpa e vergonha que sinto pela forma como Tiradentes foi injustiçado e morto. Como os povos tradicionais da floresta foram e são injustiçados humilhados, desconsiderados, desrespeitados. Tento lembrar todos os dias desses corajosos e tento continuar a enfrentar as injustiças, não me refugiar no medo, de persistir mesmo com todas as dificuldades.
Descobrir. Encontrar. Valorizar. Colaborar. Descobrir onde o meu amigo guarda o dinheiro torna esse dinheiro meu? Descobrir onde está a carteira perdida do meu amigo, quer dizer que, se eu a encontrar, fica para mim? Descobrir precisa ser e permanecer encontrar algo ou alguém e fazer disso uma coisa boa para quem se encontra, para nós e para os que não o sabem. Descobrir e partilhar. Descobrir e aprender. Descobrir e somar. Quando encontro uma pessoa num jardim fui eu que a descobri? Tenho a sensação que ela já existia, eu apenas a vi pela primeira vez. Eu. O mundo. O Brasil.
A dor e a injustiça são habitantes que teimam em permanecer na Terra. Os seres humanos teimam em achar que vieram a este mundo para serem melhores do que os outros e nessa cegueira, espalham dor e injustiça. Viver no Brasil é uma enorme honra, uma enorme aprendizagem, mas é também uma enorme luta para evitar a dor e a injustiça que parece uma chuva miudinha que tenta molhar todos a toda a hora de alguma forma.
Ana Santos, professora, jornalista