“A DEMOCRACIA BALANÇA, MAS NÃO CAI”
Deveríamos ainda estar trocando cravos e comemorando com os portugueses, mas não há festas no Brasil. Elas estão proibidas porque não temos, nem tivemos ninguém a quem chamar de líder nacional; não tivemos ninguém que segurasse a lanterna maior que iluminasse um caminho menos doloroso para todos. Ao contrário, se os médicos apontavam o caminho da vacina, houve quem desconfiasse dos chineses; se a ciência dizia pra usarmos máscara, houve quem apresentasse seu discurso para esvaziá-la; se pesquisadores quase imploravam para que ficássemos em casa, houve quem quisesse nos obrigar a morrer em nome da economia, do emprego, da renda – nada de salvar vidas.
Ameaças não combinam bem com a democracia, nem com o conceito de liberdade que tenho. Há quem pense que liberdade significa fazer tudo o que se quer, mas isso é esbórnia; eu acho que liberdade significa olhar ao redor e ver o que o grupo precisa naquele momento. Grupo, não é apenas o meu grupo, a minha turma; grupo é um coletivo enorme de pessoas diferentes, que têm demandas diferentes, necessidades díspares e que você precisa agrupar. Aqui no Brasil, as pessoas chegaram ao cúmulo de se acharem tão mais, tão “plus” que as outras, que lhes é normal forjar um motivo para tomarem a vacina e os outros não; para terem impostos reduzidos e os outros não. Minha igreja não paga imposto, mas o candomblé paga; eu comprei vacina para os meus funcionários, mas a vizinhança deles está por conta própria; meu avião e iate não pagam imposto, mas a moto do motoboy paga.
Que espécie de economia é essa? Que espécie de mercado é esse? Desumanizar virou praxe, invisibilizar é o meio através do qual isso parece não doer em quem apoia essas medidas. Globalização não é isso. O assunto não serve apenas para políticos, mas para empresários. Como tudo pode ser bom se só vocês comem, se os índios estão sendo perseguidos, se as árvores estão acabando, há queimadas, lixo por toda parte? Vocês realmente acreditam que podem criar uma célula independente de sobrevivência do mundo? Que é só pegar o seu jatinho e sumir? Mas sumir pra onde se vocês não estão deixando nada no lugar?
A gente se distrai por um instante e a praga do vírus te alcança, seu trabalho deixa de existir, os refugiados aumentam, mas não são mais notícia, os presidentes mentem descaradamente em seus discursos na Conferência do clima, as democracias ensaiam fraquejar ao optarem por governos que querem testá-las ao máximo. Mas não somos ratinhos de laboratório e não há espaço para menos democracias e menos liberdades no mundo. Portanto, amigos portugueses, guardem um bom conselho brasileiro: Tenham um olho no padre e outro na missa, desconfiem dos populistas baratos que discordam de todas as propostas, mas não propõem nada. Ninguém é apenas o seu discordar, mas também o seu somar. Se não soma nada, é zero, tá fora da conta, joga fora.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Ficar como um gato ao sol, um pouco, todos os dias, beber um copo de água quando se tem sede, comer quando se tem fome, ter uma roupa limpa e confortável, viver num espaço, casa ou apartamento, limpo, seguro, confortável, ter o direito de ir e vir, viver num lugar seguro, viver num país que lhe proporcione cuidados de saúde dignos, uma educação equilibrada, justa e ambiciosa. Ter um trabalho onde existe respeito, admiração e incentivo profissional e humano. Não sofrer injustiças, injúrias, ameaças, pressões. Um salário que seja suficiente para alimentação, habitação, saúde, educação, cultura, imprevistos e para prevenir o futuro (poupança). Poder sorrir e dar altas gargalhadas quanto tiver vontade. Dizer não e o não ser ouvido e obedecido. Poder casar com quem se ama. Poder escolher. Ter opinião e essa opinião ser respeitada. Poder errar sem crítica nem censura desde que não prejudique ninguém. Viver em paz onde quer, como quer, com quem quer. Quantas pessoas no mundo têm tudo isto?
Talvez nenhuma...
O que é ser livre no século XXI?
Penso nas pessoas que moram nas ruas, em carros, que passam fome, sede. Nas que vivem na invenção mais absurda do Século XX – campos de refugiados. Nas que são tratadas como bichos ou como invisíveis.
Penso nos milionários fechados nos seus carros blindados, nas suas casas luxuosas, cheias de nada, rodeados por seguranças, rodeados de coisas, bens, ambição, inveja, vazios, vaidade. Nos que têm ilhas, fazendas, casas de praia, casas de cidade, helicóptero, avião, piscina, Jacuzzi, churrasco, “empregados” para tudo. Têm tudo mas falta-lhes sempre algo.
Penso nas pessoas a quem chamamos políticos, que nos prometem sociedades justas, dignas e felizes. Penso nas caras deles quando nos mentem. Na vida que temos por causa do que não fazem.
Penso que precisamos ter cuidado. A liberdade está em perigo.
Ana Santos, professora, jornalista
"Abril - ou somos todos, ou ninguém é"
É-me difícil escrever sobre democracia, liberdade, abril. Parecem-me coisas tão óbvias, tantas vezes ditas. Ainda assim, tenho a certeza que é preciso.
Liberdade. É o quê?
Eu, que nasci em 1976, não sei o que é viver num país sob o jugo da ditadura. Eu, que cheguei aos 18 anos e fui às urnas, não sei o que é, por causa do género, não poder votar. Eu, que sou branca, heterossexual e católica, não sei o que é pertencer a uma minoria estigmatizada, ou ser vítima de preconceito.
Eu, uma privilegiada do sistema, que estudei em escolas privadas, cresci numa família estruturada, fui mimada quanto baste e tive sempre alguém para me amparar a queda, sei que há imensa coisa que não sei.
Sabendo que há tanto que não sei, tenho dificuldade em escrever com pretensões de saber daquilo que falo. No entanto, consciente de tudo o que a minha experiência própria não me ensinou, disponho-me ver (não é olhar, não é vislumbrar, não é espreitar, é VER mesmo) e a escutar. De tanto que tenho visto e ouvido, há ideias que me inquietam:
De abril, ficou-nos um país livre das ditaduras políticas, dos regimes totalitários. Mas será que também nos ficou um país verdadeiramente livre de opressão? Fomos capazes de abolir todas as ditaduras?
Soubemos há dias da pulverização do SEF, em consequência do que um homicídio macabro veio trazer à luz do dia. Vamos assistindo a pessoas que defendem punição de crimes com castigos físicos e outras atrocidades, ocupar cargos políticos elegíveis. Há discursos xenófobos e machistas no parlamento. Vemos, constantemente, pessoas a julgar outras pessoas pela orientação sexual, pelas crenças religiosas ou falta delas, pelo estilo de vida, pelo que vestem.
Se eu hoje posso vir aqui escrever o que penso, devo-o à revolução de abril. Se não passam nos meus textos os riscos do lápis azul, é a abril que o agradeço.
Porém, transformar a liberdade de expressão em direito à injuria, à calúnia, à humilhação em praça pública (vulgo media e redes sociais), é uma coisa diferente. Não se pode esquecer a velha máxima de que “a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro” e construir uma realidade virtual e cruel, onde vale tudo.
Encaixar a liberdade em parâmetros de acordo com as nossas próprias crenças e preconceitos, promovendo assimetrias e desigualdades entre pessoas que são diferentes (e podem e devem), não é aceitável.
A geração dos meus pais lutou pela democracia e entregou-nos, de bandeja, a liberdade. Cabe-nos, a cada um de nós, garantir que ela chega a todos. E garantir que não dá voz a gente com ideias de a limitar só a alguns. A distinguir alguns. Porque é nesse momento que a democracia começa a desmoronar-se.
Há limites para o que se pode dizer/escrever? Ou, em liberdade, vale tudo?
Não tomemos por garantida a liberdade. Primeiro, porque pode, um dia, faltar-nos. Segundo, porque ainda são muitos os que não a têm. Terceiro, porque há quem acredite que deve ser privilégio de alguns.
Na a verdadeira liberdade, ou somos todos, ou ninguém é.
Só no dia em que não houver desigualdade de direitos é que podemos baixar os braços e descansar.
Abril, sempre. Abril, em cada dia. Abril, para todos.
Cláudia Quaresma, convidada
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