Conto “SÓRDIDA”
- Riiicaaa!!! Ela olhava em torno com ar plácido, mas por dentro as diferenças que via entre ela e aquele... como dizer... povo – gritavam.
Aquela falação de sempre porque o tal – povo – reclama seempre das meesmas coisas!
- Que coisa mais chata! Vão falar que o dinheiro não dá, que a situação é difícil e já vão emendar no problema da sogra ou da tia, da filha...
Ouviu um trovão lá longe.
- Será que amanhã dá praia? Ahn? Sair mais cedo porque vai chover? Nem pensar! Tem muita gente querendo seu lugar, viu? Nem ensaie!
Mas aí choveu. Chuva democrática que inundou as áreas ricas e pobres. Um dilúvio. A serra derreteu, bem dizer. Ela – a rica – nem tinha experiência em ter problemas. Sua maior dificuldade na vida era escolher entre o que ia comer no almoço e no jantar. Mas naquele dia, seu menino, que tinha saído de bicicleta “muitas marchas”, foi surpreendido pela mesma chuva que pegou todos. E sumiu. Também.
No meio daquele corre-corre, gente gritando, pedidos de socorros abafados, casas caídas, ela – que toda a sua vida se sentiu superior ao – povo – pela primeira vez sentiu-se mesquinha e sórdida. Não aproveitou sua vida. Apenas a gastava, dia a dia – nada nela tinha uma propósito definido.
- Eu nasci para quê, se nem do meu filho fui capaz de saber, nem para o céu olhei, nem escutei e relacionei o pedido de sair mais cedo, com chuva e bicicleta, meu Deus!
A – como dizer – funcionária – estava no portão, de guarda-chuva na mão, gritando por seu filho. E ele – depois soube – tinha ido se abrigar na casa de sua – funcionária. Aquela para quem havia negado a saída antecipada.
- Sórdida e ordinária. Mesquinha e egoísta.
Nunca mais foi a mesma. Olhava seu filho e seu peito apertava.
Naquele dia ela viu a empatia. O que caiu sobre ela (mais que a chuva) foi a empatia da sua funcionária – a Cida. Foi de sórdida e pobre de espírito a milionária, capaz de estar ao lado de quem estava ao seu lado sempre – eles – o povo.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Gritos e Lama”
Eu ouvi aquela voz e não fui capaz de fazer nada. A D. Maria, minha vizinha da casa amarela. A quem eu tantas vezes fui pedir limões. Com quem chorei tantas vezes pelas dificuldades da vida. Ela, batendo na minha porta aos gritos, pedindo a minha ajuda. E enquanto eu fui pegar a minha filha pequena, antes que fosse tragada pela água, enquanto fui ajudar a levantar da cama, a minha sogra, doente, e tentar tirá-la do perigo, enquanto tentava me salvar e nos salvar, a voz de D. Maria desapareceu no meio das águas e da lama. Não fui capaz. Não consegui fazer tudo. Não fui capaz.
Me lembrei do tempo em que o povo daquele outro lugar me olhava como se eu fosse mais rica, mais favorecida e em cada esquina me tentava enganar ou convencer a fazer algo bom para eles, não tão bom para mim. Eu tinha pena de eles comerem comida fria, de comerem comida numa caixa de plástico, mas, apesar disso, eles foram curtir o carnaval e eu não. Eles viajavam e eu não. Eles nunca tinham dinheiro, diziam, mas quem lhes pagou o serviço fui eu e quem ficou sem o dinheiro foi a minha conta. Sempre que aquele homem surgia com mais uma investida de pedir mais dinheiro, com seus problemas que só pareciam aumentar, como se eu fosse um saco sem fundo, num lugar que nem me via, e eu nem entendia de onde e o que eu tinha a ver com isso, dentro da minha cabeça um tipo de gritos da D. Maria, estouravam meus neurônios.
Eu tive uma coisa para dar e ninguém queria. Eu insisti muito que queria dar e ninguém queria. Pensei tristemente que teria de deitar fora sabendo que tanta gente queria mas não tinha como ir buscar ou naquele momento não podia. Até que, de repente, muitos queriam e eu me senti feliz. Que bom, que bom que todos poderão ter uma parte porque chega para todos. E eis que não queriam partilhar o que eu tinha para dar. “Eu quero, mas quero tudo, senão não tem interesse para mim.” E eu não entendia como isso acontecia. Como você quer tudo? Eu estou te dando uma coisa que terias de comprar e seria muito cara. E tu, queres e não queres dividir com outros. E eu tenho de gerir essa corrida ao ouro, essa lamentável corrida ao ouro, um ouro que eu desejei doar e torná-lo útil para os outros. Lembrei da D. Maria. Lembrei dos gritos dela. Senti calafrios. Lembrei dos meus. Não propriamente gritos, mas pedidos, conselhos, desejo de partilha do que sei e do que posso partilhar. Cheia de sonhos e disponibilidade. Ninguém quis, a não ser que fosse de graça, ou sob suas ordens. Aceitavam gentilmente se fosse tudo para eles também, nada de dividir, nada de partilhar.
Ai D. Maria, como eu precisava de falar com a senhora, ter uma das nossas conversas mesmo ali na rua, cada uma no seu banquinho, olhando as estrelas e comendo um picolé de amendoim. É, aquele que a gente amava. Me desculpe D. Maria, eu não a fui ajudar porque eu não estava conseguindo nem me ajudar, nem ajudar minha filha, nem minha sogra. E agora seus gritos colaram em mim para sempre e eu não consigo largar a sensação de que eu também quis tudo, eu também não soube dividir.
Ana Santos, professora, jornalista
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