"Vivendo na Praia, Tocando Tambor"
Macho branco que se sente diferente dos outros. Pra ele, o diferente é o que o faz sentir-se superior. Mas para o resto do mundo - ou uma boa parte - apenas criminoso.
- Racista!
Começou a ser apontado na rua. Não se sentia culpado de nada, mas também não queria ser condenado, ir preso, nada disso. Afinal, como "ser superior", não tinha como explicar a onda de reclamações em casa.
- Falaram seu nome lá na aula...
- Bah, mas quem falou da gente, tchê?
- Da gente não - falaram mesmo de ti. Que tu era um racista.
Ainda aquilo? Afinal, como todo racista, no momento em que se demonstrava o crime, a palavra criminosa, a intenção, ele puxava o mesmo " velho coelho da cartola mágica" - na família tem alguém, parente de alguém, que não é branco. Portanto, chamar de preconceituoso não está certo porque se uma pessoa casa com alguém miscigenado, não pode ser chamada de racista.
As desculpas e justificativas se multiplicavam, conforme o medo de ter que pagar por crimes que ele achava que não cometera, aumentava:
- E quando eu falei "A parte de cima do Brasil", não me referia a cor nenhuma. Me referia a região. Bah... E quando eu falei que baiano só vive na praia, tocando tambor, não foi na intenção de ofender. E quando eu falei que os argentinos são melhores, também não foi na intenção de afirmar que os brancos sabem trabalhar melhor que os pretos. Eu não acho que cometi crime nenhum. E quando eu falei e quando eu falei... Bah, Tchê, se for o caso, me desculpe...
Mas trocar preto por nordestino desqualifica o preconceito? Onde? Trocar nordestino por baiano... Situar o que não dá certo no Brasil na parte de cima do mapa... Sugerir que "a parte de baixo" não empregue "a parte de cima"... Oxente...
O fato é que o Ministério Público começou a investigar, o Partido o expulsou e a Câmara pediu sua cassação.
- Racista!
- E o que vai acontecer com o cabra? - perguntou o vaqueiro do semi-árido, o peão, o operário? E também o cantor, o compositor, o ator, a jornalista, o poeta, a intelectual, o médico, a cientista? A diarista, a drag queen, a performer, o mecânico. O que vai acontecer com o cabra? Era o nordeste, mais uma vez se assumindo nordestino, miscigenado e pronto para encarar o que esgoto humano fala, sempre mal ancorado no poder. Encarar e provar que existe um povo que a bandeira empresta, para cobrir essa infâmia e covardia!... Meu Deus! Meu Deus!
- Revolução francesa é pouco pra nós, cabra... e a vergonha é toda sua... - Racista criminoso. - E o que vai acontecer com o cabra? Perguntou quem tem vergonha na cara e sangue nas veias? Para o crime, justiça. Chega de tantas mãos pela cabeça. E o tambor tocou sem ser na praia, foi nas mãos de Xangô e a Terra tremeu... ANA RIBEIRO
Conto "A ironia do tambor"
Todos os anos decido passar férias na Bahia. É barato, é lindo, ótima comida, sorrisos e música.
Passo meus dias descansando, dormindo, comendo comidas inacreditáveis, bebendo o que quero, conhecendo pessoas incríveis.
Fico sempre em resorts da linha verde e tenho direito a coisas que nem sabia que existiam. Todas as mordomias, todas as gentilezas, todos os luxos.
Venho sempre mais moreno, mais feliz, mais descansado, mais gordo. Me sinto o verdadeiro rico, o verdadeiro poderoso que tudo pede e tudo tem. Então nos resorts que têm tudo incluído ainda é melhor - comida todo o dia, comida que nunca tenho onde vivo. Bebida na quantidade que nem meu corpo aguenta. Me sinto dono do mundo. Posso pedir mais toalha, mais isto, mais aquilo, ficar incomodado com tudo o que me apetecer porque tenho sempre razão e sempre existe alguém que resolve o que me lembro de pedir ou questionar. No próximo ano vou voltar...
Volto para casa, para minha vida, meu trabalho. Descansei tanto que nem tenho vontade de voltar a trabalhar. Ou será que nunca gostei de trabalhar? É que nunca vou com vontade. Estou sempre à espera dos finais de semana, sempre a sonhar com as férias, feriados. Será o trabalho que escolhi e que afinal não me realiza? De qualquer forma, já estou quase na aposentadoria e já consigo trabalhar menos, esforçar-me menos. Depois... depois posso fazer uma vida, todos os dias de nada, de dormir, comer, beber e mergulhar no mar. E aí sim a vida terá sentido para mim já que essa coisa de ser útil à sociedade nunca me estimulou. Eu quero é não fazer nada que seja difícil e fazer tudo o que é fácil. Ou melhor, viver nada fazendo e tendo pessoas que fazem tudo por mim. O céu...
Desfaço as minhas bagagens, tomo um banho e agora vou ter de fazer a minha comida. Talvez seja melhor comprar alguma, não me apetece cozinhar. Já me está a custar tirar a roupa da mala e colocar na máquina de lavar. Ui que já estou cansado...
Toca o telefone
-Alô?
- Ui, já fala "Alô"...
- Ahahahah...já sabes que quando venho da Bahia venho com sotaque de paraíso...
- Correu tudo bem?
- Correu tudo bem, menos ter de voltar...
- Ahahahah....Olha uma coisa, e os baianos? São pessoas trabalhadoras? É que li uma notícia bizarra de escravatura no século 21 que nem pensei que era verdade...
- Os baianos? Trabalhadores? Os baianos são muito preguiçosos....totalmente preguiçosos.
Ana Santos
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