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Um Conto de fora e um conto de dentro


Conto “A JOIA DOS TERRORISTAS”

Marta tinha parado de se divertir com a grosseria reinante no País, desde a morte de Dom e Bruno. Ali, tinha jurado que não iria mais calar, fosse onde fosse. Muito mais aconteceu depois. Cada “pior” era substituído pelo ”pior ainda”, no dia seguinte. E veio o caos, em 8 de janeiro – o Dia da Infâmia. Mas com ele, veio a vergonha – talvez o medo – dos que insuflavam o tal pior no dia a dia.

Não que as mentiras tivessem parado. Mas – mas! – os incautos estavam se afastando, temerosos dos crimes cometidos e vistos pela TV no mundo inteiro.

Muitos crimes. De crime de golpe de estado a associação criminosa, de abolição violenta do estado de direito democrático, a crimes contra o patrimônio. O nome “terrorista” deixou o noticiário internacional para se alojar na vida de todos. Porque todos conhecem alguém que achou que conduta criminosa era ideologia.

Ali, em juízo, ela tinha mais 300 tornozeleiras para colocar – o sapatinho de cristal da “princesa burra”, a joia da coroa dos terroristas brasileiros – os sortudos. Os mais criminosos, os presos em flagrante, os com prisão preventiva decretada – terroristas perigosos – não tinham direito à “joia” – a liberdade de andar, mesmo com as restrições da tornozeleira.

Ela olhava aquelas pessoas reclamando da falta de wifi e se perguntava se talvez mais uns 5 ou 6 dias” de molho na realidade do xadrez” seriam de melhor ajuda.

- O maior problema é a falta de realidade, sabe? – Ela falava com o carcereiro quase que com intimidade – dada a quantidade de “tornozelos incautos” que já tinham passado por eles.

- Olha o que dá se esconder da realidade! Ta vendo aí? - O carcereiro se animou: - Quer coisa mais idiota do que ouvir “cadê o código fonte” e acreditar? Aqui é cadeia, minha linda, cadeia! Agora é olhar pra cara do filho e sentir vergonha porque vacilou! Porque quis se mostrar pros amigos e dançou! Sabe programa policial da TV? Pois é: A casa caiu, malandro!

De repente, um homem na fila da tornozeleira caiu no choro.

- Acabaram com a minha vida! Quem vem me salvar? Todo mundo aqui é patriota!

- Que mané Patriota, rapaz... Sabe aquele ditado: Todo malandro tem seu dia de otário? No dia 8 de janeiro você deixou de ser cidadão de bem e passou a ser terrorista, bandido! Bastou um dia de otário pra você sair de um lugar na vida e vir cair aqui. E olhe bem! Você ainda vai voltar pra casa, teve sorte... Mas vai ter muita gente que pra sair daqui vai levar anos. Anos!

- Deixa ele, Zé... Marta estava com vergonha da vergonha do tal homem. Das lágrimas.

- Não! É pro bem dos outros! Você pensa que não tem mais malandro por aí, doido pra ter seu dia de otário? E avise os seus colegas, viu? Xadrez não é lugar pra ninguém! Se o cara não tem oportunidade e escorrega eu entendo, mas vocês, tendo tudo em casa... Não dá, Mané, não dá!

12 horas de trabalho, só naquele dia. Marta viu gente deprimida, gente insana, aos gritos – ficou preso por desacato, o Mané do grito – mas uma coisa foi certa:

- Se a imitação dos americanos continuar, os peixinhos pequenos são pra tentar encobrir a fuga do tubarão! Tem que ser SEM ANISTIA, pra ninguém ter a ilusão de que ser otário por um dia não tem importância, não tem consequência.

- Ei você! Ta dormindo na fila, Mané? Sua vez!

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Amigo secreto”

Eu queria te contar tantas coisas. Coisas. Apenas coisas. Nada de muito intelectual. Olha, contar-te por exemplo que saiu o livro do filho da Lady Di e que parece contar muitos segredos. Segredos que já se imaginavam mas não deixam de ser segredos. Metade do mundo comprando o livro e metade considerando tudo uma coisa banal, pindérica, para gente sem nada para fazer. Sabes como é. Pelo menos este filho parece com ela, íamos dizer as duas, parece com a mulher que foi capaz de enfrentar o que a maior parte das mulheres não enfrentam. E que por isso deve ter se sentido muito feliz e realizada mas também extremamente só. E pagou duramente por isso. Como tu. Tenho pensado muito nisso. Como tu te tornaste uma especialista em viver, em aguentar, em viver só por entre a multidão. A viver só, enquanto acolhias todos, sem exceção. Impressionante.

Queria te contar sobre o que se está a passar aqui no Brasil. Falar todos os dias. Irias saber de tudo, de mim, dos dias e isso ia te deixar mais calma. Acho. E a mim também. Também acho.

Precisava de um daqueles domingos, tu e eu, nos silêncios e nos segredos. Mesmo assim escondias muitas coisas. Eu sei, precisaste de aprender a ser assim. Está tudo bem. Eu entendia. Isso não me interessa. O que me interessa foi que fizemos muito por nós. Falei tudo de mim e tu, do teu jeito, tudo de ti. Às vezes essas conversas eram possíveis nas viagens para fazermos compras noutras cidades ou no açougueiro, lembras? Demorávamos a aquecer. Era muito fofo. Parecíamos aqueles carros antigos que ficavam a aquecer para depois poderem aguentar uma boa viagem. E era sempre uma boa viagem, não era? A parte mais importante que falávamos era quando já estávamos a chegar e por isso nunca terminávamos nada. E na próxima viagem para retomar era tramado. Éramos muito engraçadas. Quando chegávamos e voltávamos para a vida normal via que tu ficavas com outro olhar, com outra alegria. E eu parecia que sentia os pés a levitar, olhava a vida com mais curiosidade, com coragem, com gosto. Era uma injeção de energia estrondosa. Falta-me. Faltas-me.

Guardo com muito orgulho a forma como resolvemos as nossas diferenças, em relação à minha vida. Eu demorei a habituar-me e sabia que para ti iria ser difícil também. Aprendi a ter calma, a deixar o tempo te dar alguma paz e alguma aceitação. E tu foste incrível. Deve ter sido muito difícil, mas tu caminhaste, devagar, tateando. Aos poucos uma pergunta, duas, uma reclamação, um medo. Tentei te dizer de mim como pude, não tenho a certeza se entendeste sempre, nem se disse da melhor maneira mas acho que coisas boas chegaram a esse coração e construímos um caminho e um lugar que nos fortalecia. Que nos defendeu perante as ameaças externas. Que te ajudou a resistir aos boatos, às ideias pré-concebidas, à humilhação fortuita. E aos poucos também foste percebendo que eu percebia a tua vida, pelo que passavas, sem me dizeres. Sem dizeres a ninguém. Tento imaginar que sabes que eu sei de ti e que está tudo bem assim. Tento imaginar que sabes de mim e que está tudo bem assim. E que um dia destes vamos finalmente comprar o pano novo para o sofá velho.

Ana Santos, professora, jornalista

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