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2 Contos, “TRAUMAS COLETIVOS” e “Semana Tranquila”


Fotografia de Diana Markosian

Contos “TRAUMAS COLETIVOS”

Tic tac, tic tac. Ela olhava a passagem do tempo como se ele não existisse. Morava nos relógios, nos ponteiros. As crianças choravam. Eram tantas... Havia muitas – a maioria – que não choravam mais. Ficavam paralisadas ali naquela sujeira, olhos arregalados, trêmulas. Ao redor delas sangue, gritos e esgoto a céu aberto. Moscas. Debaixo das ruínas, mais crianças. Mortas ou quase. Ninguém sabia. Ninguém sabia de nada naquela confusão insuportavelmente dolorosa. Catástrofe humana.

Trauma era essa coisa estranha. Todos estavam vivos e caminhavam para a vida como autômatos, como robôs que estavam ali, querendo dali sair. O desejo de que acontecesse um milagre pairava dentro de todos os que viam aquilo por todos os meios: TV, internet, política, ONGs, entidades assistenciais.

- Pelo amor de Deus são crianças sendo mortas por todos os lados. Nada justifica matar cem pessoas inocentes por estar atrás de um terrorista, uma arma. De cada 10 mil, 5 mil são crianças, ora. Todos estão vendo isso. O que vai ser necessário acontecer?

Bombas. A resposta vinha no idioma bombas.

- Retire os doentes que vamos invadir e jogar bombas nos hospitais! Retirem-se da cidade que vamos bombardear tudo. Nada vai nos deter.

Para quem tanto sofreu no passado, nada de compaixão para outrem. Parecia que a vida havia apagado toda a solidariedade pela existência da dor, ao invés do amor.

Tic tac, tic tac. A sujeira mal era percebida, mas não havia água potável. A quantos dias mesmo? Os dias se misturaram tanto ao sofrimento que o tempo tinha parado na dor, na lágrima que havia secado nos olhos e no corpo trêmulo da criança que olhava tudo de olhos arregalados, boca crispada e imóvel. Imóvel debaixo de bombas e tiros porque estava paralisada, cristalizada no trauma.

Superação talvez, mas num futuro distante. Agora, profunda perplexidade. E todos não somos iguais perante a lei? A começar daí, o que mais nos venderam como verdades inúteis? Ser amigo do “país mais forte” lhe garante a ferocidade presumida? O País mais forte não deveria mergulhar na tentativa dedicada de ser cada vez mais justo? A política é uma mentira?

Fome. Sede. Dor.

- O que as mulheres do mundo podem fazer juntas para impedir essa violência?

Um choro perdido à distância. Um lamento, um gemido.

A dor também sou eu.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Semana Tranquila”

Quando penso na semana que passou nem sei o que dizer. Na verdade, nem sei o que dizer das semanas que passam. No final de cada semana, sempre tenho vontade de exclamar: “- Que semana esta, hein?” Mas a semana seguinte consegue superar a anterior. Em coisas para fazer, em problemas que têm de ser resolvidos, em situações que não têm fim. As semanas se superando, as coisas se avolumando, eu tentando resolver e quando parece que tudo está resolvido, sempre algo surge para manter o estresse. Senão o que seria da vida sem o estresse?

Esta segunda-feira descobri que, para além dos milhões de impostos que pagamos para enviar dinheiro para Portugal, surgiu um novo imposto, vindo não sei de onde, que agora retira mais 20 euros no final. A cereja no topo do bolo, para além das taxas e taxinhas dos “pobres Bancos”.

Terça-Feira foi o dia de perceber que o carro, novo em folha, veio com um defeito no ABS. Como tem garantia foi para arranjar. 3 dias. 3 dias para saber que problema é e para consertar. Os carros agora apenas precisam de um computador ligado a eles para saber o que se passa, mas o meu carro, precisa de 3 dias na marca/ na autorizada, para resolver. Os meus mais de 50 anos me dizem ao ouvido que este problema não se vai solucionar nestes 3 dias. Algo me diz que vou ter de gastar uns cabelos brancos com este problema de “fábrica”. E me pergunto se o carro virá melhor ou pior, “dessa estadia”.

Quarta-Feira foi dia da TV cabo deixar de funcionar. Do nada. Tinha acabado de ver na minha conta que o dinheiro do pagamento tinha saído da conta – sai automaticamente da conta...e avaria “desautomaticamente”. Ligações e ligações para a CLARO. Desligue, depois aguarde 10 segundos e volte a ligar; retire o cartão e o coloque na posição certa; deixe ligada a televisão; deixe desligada a televisão; aguarde 3 horas; aguarde 72 horas; o problema é técnico, vamos enviar de novo um técnico; o problema é sistémico, só pode ser resolvido pelas telefonistas; vamos dar mais uma atualizada. Argh.... Depois de horas e dias de protocolos, ouvidoria, técnicos, sistemas, e de repente, do além, voltou ao normal.

Quinta-feira chegaram finalmente os óculos tão desejados da shopee, ou da ali-express, ou sei lá de onde. De um desses lugares longínquos que demoram eternidades a chegar mas que são espantosamente baratos. Quando abro a encomenda de tão desejado par de óculos, percebo que não são os óculos que pedi. Puxa vida que óculos horrorosos me enviaram. O que faço? Ler instruções. Parece que posso devolver. Meia hora para saber o que fazer, preencher online as instruções, levar os óculos junto com um código e ir aos correios. Lá, o cara que me atendeu, de fita métrica pendurada no ombro, mal me vê com os óculos diz que preciso comprar uma caixa. Eu não quero gastar dinheiro. Volto para casa, procuro uma das caixas que guardo para estas situações, embrulho bem. Volto aos correios. O cara dá um papel para preencher com pedidos de informação que não tenho. Ele diz que preciso entrar no site da Shopee. Lá entro mas aquilo é mesmo chinês para mim. Peço-lhe ajuda. Ele pega no celular e em três tempos descobre o código que se consegue com o código que eu já tinha. São códigos demais para mim. Fez várias ações na minha frente. Imprime papel, escreve no computador, faz mais não sei o quê e depois diz-me que já posso ir. Eu perguntei se podia mesmo porque tudo me pareceu tão complicado e de repente era tudo tão fácil. Mas era. Era verdade. Vim embora. Mais 3 meses de espera pelos óculos me aguardam. Quem espera sempre alcança.

Sexta-Feira estava mesmo a terminar a edição de um programa longo e complexo que demorei meses a fazer e o computador pifou. E tudo pifou com ele – o programa que estava quase editado e todos os outros que estavam no início da edição. Bate um desespero por vezes, vindo não sei de onde.

Sábado resolvi ficar na cama, dormindo até enjoar. Mas foi o dia que todos se juntaram para tocar o sino: o cara do filtro da água, o cara que vem ler a contagem da eletricidade, o cara que faz a contagem da água, o morador de rua que costuma vir pedir comida, a vizinha que costuma pedir cidreira, a vizinha que costuma pedir capim limão, o cara que vem fazer manutenção da cerca elétrica, o cara que vem fazer manutenção do alarme.

Domingo, é hoje. Estou escrevendo este conto. E não sei o que fazer, nem o que não fazer. Queria desligar o mundo um pouco. Ficar em pause, mas o mundo não dá tréguas. É melhor tomar um banho, tomar o café da manhã e me preparar para o que vem.

Ana Santos, professora, jornalista

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