Conto “SOCIALMENTE CANINOS”
Se abaixou mais uma vez e ali brincou com o cachorro, que já agia como seu amigo. Cruzavam-se pela rua e a simpatia do bicho era mesmo contagiante. De repente, os olhos humanos se cruzavam e lá vinha, primeiro, um bom dia meio tímido. Já não sabia mais quantos humanos tinha colecionado só por gostar de brincar com seus cachorros e bebês. Sobravam-lhe perguntas: seria já o primeiro sintoma de “defeito evolutivo” adulto, aquele comportamento “meio sem jeito” na convivência comum? Os bebês estavam mais ariscos, interagindo menos, mas todo mundo dizia que os bebês “estranhavam os estranhos”. Mas, muitas, vezes, não era o caso de estranhar; a criança apenas não convivia com pessoas falantes e não sabia muito bem que sons eram aqueles.
Lá vinha um cachorro idoso, já “puxando da perna”, com uma menina super meiga e cordial que todos os dias parava pra dar um oi. Era a vida, reclamar daquele caminho tão estreito que foi deixado para o pedestre caminhar, falar da chuva ou do sol, cumprimentar as pessoas e perceber que para muitos, aquele era o momento especial, onde alguém se interessava por suas doenças, dúvidas e problemas.
- Como é possível termos ido tão longe para perdermos o assunto que tínhamos antes?
Pelas outras calçadas, muitos passavam falando sozinhos, de cabeça baixa, olhando sua vida ao se fixarem em seus passos, olhos no chão. Outros, fones nos ouvidos – isolados, socialmente. Aqui e ali, porém, cada vez mais pessoas se aproximavam, nem que fosse para um sorriso, um oi, um aceno. Um aceno evolutivo que preencheu nossa vidas tanto tempo, não poderia ser descartado assim tão fácil.
- Meu Deus, como as pessoas estão cada vez mais sozinhas...
Choveu caoticamente na Espanha, as pessoas jogaram lama na cara do rei, mas ninguém construiu a oportunidade de lhes dizerem o que ele deveria ter feito e não fez, por exemplo. Sem comunicação, sem negociação, sem troca, sobra mesmo só a lama na cara – pensou.
Uma menina fofa jogou sua boneca no chão e não resistiu em chamá-la de coitadinha. A fofa me apresentou ao Duque, seu cachorro branco, que não me deu bola. Mas o pai, este sim, abria sorrisos de amor, nos vendo naquele papo com a menina.
Seria tão fácil e eficiente se os governos estimulassem apenas que as pessoas voltassem a falar, assim como os bebês e os cachorros faziam todos os dias, só andando na rua. Se construíam ambientes amenos com lambidas, rabos abanando ao ar e crianças passeando. Um ambiente onde se podia falar, apenas
- E quando não existirem mais velhos que “puxem papo” com eles, como vai ser? Pra quem vão se mostrar felizes e orgulhosos, se todos estiverem ensimesmados nas torres de seus próprios problemas? E deu um bom dia além, como se estivesse abrindo a porta da solitária para mais alguém se libertar do silêncio social a que tinha sido condenado...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Escolhas”
Percebeu que, escolhesse o que escolhesse, nunca estava certa. Escolheu a descida – porque a tia queria – mas os travões da sua bicicleta estavam sem funcionar. Escolheu a subida, porque era o que a família toda queria, mas ela se perdeu com tanta rua e mais se sentiu confusa e desorganizada do que feliz. Escolheu parar, mas sua vizinha detestava vê-la ali, sem movimento, ganhando teias de aranha. Escolheu dançar, porque naquela época era o adequado, mas não tinha jeito, não tinha ritmo, não tinha rebolado – mais se envergonhava. Escolheu saltar, mas vieram outros povos e pediram para não o fazer de novo. Escolheu adoecer, mas apesar de muitos se sentirem satisfeitos, seu coração lhe pediu para se tratar e seguir por outro caminho. Escolheu vencer, mas disseram-lhe que isso não era para ela. Escolheu cuidar dos outros, descuidou-se, nem os outros deram valor. Escolheu pensar só nos outros, mas nunca era suficiente o que fazia. Escolheu aceitar todas as injustiças, mas Deus não deixou. Escolheu enfrentar todas as injustiças, mas não teve forças para tanto peso. Escolheu mentir, mas era muito o vazio. Escolheu saber as verdades, mesmo doendo. Escolheu afastar-se dos mexericos, das aparências, do diz que diz, do “quem é o melhor?”. Escolheu não dar valor ao que não tem valor. Escolheu, não dar importância ao que dizem as más línguas, línguas próximas, línguas conhecidas, línguas envolventes, traumatizantes, repetidas, insistentes, incômodas, incisivas, desagradáveis, destrutivas, cansativas.
Então escolheu ir atrás de si, escolheu-te, escolheu uma vida que é construída em cada dia, sem guião, sem obrigações, sem deveres, sem pressões, sem espaço para as escolhas dos outros sobre ela.
- Também é pão francês para a senhora?
- Não. Vou levar pão de milho.
Ana Santos, professora, jornalista
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