
Conto “GUERRA DE VERSÕES”
Ela desligou o celular com raiva e o jogou com força em cima da cama. Aquele namoro tinha virado o inferno na sua vida. Como um sentimento poderia se transformar em seu oposto? E agora tinha aquele assédio moral, aquele bullying, pela internet. Querer transformar o que eles tiveram (praticamente) em prostituição era mais terrível do que vê-lo com outra garota, achando que ela nunca iria saber.
- Pois soube, ok?
... E para não ser ele o safado, o galinha, que trai sem piscar, inventou aquela história onde era ela a que não prestava... O fim da picada...
O mundo inteiro aceitava a existência da mentira, parecia. Não tem vacina porque o povo não quer se vacinar, porque não está provado que vacina salva, porque os cientistas fazem parte de um complô internacional... O namoro acabou porque ela não lhe dava atenção, porque nunca foi fiel, porque cobrava fidelidade, era frígida ou vivia transando com todo mundo... A guerra da Rússia contra a Ucrânia era culpa da Ucrânia – ou pior! Não havia guerra contra a Ucrânia! Os aviões russos “jogam caramelos” sobre as casas e os ucranianos estão reclamando porque terão cáries!
Mas mesmo que os ucranianos tivessem agido como anões enlouquecidos (para enfrentar o Putin), não se pode esquecer que o País dele tem 2 metros de altura, é faixa preta em artes marciais e dono da maior frota de bombas que existem. O que um anão poderia conseguir contra um gigante, além de provar que ser grande, agindo assim, é ser covarde?
- Bem, meu caro... plantando nas redes a sua verdade maluca ou não, isso não vai me impedir de repetir, repetir e repetir a minha versão! Pior do que isso é Dona Brasília, minha vizinha, calar com medo de perder o algo semelhante à titica de galinha que ela usa em seu jardim – ótima pra plantas, ela diz. Pior ainda é Dona Brasília se aproveitar do momento para tentar, mais uma vez e mais um pouco, depredar mais pedaços de floresta que temos em comum, justificando um crime ambiental com a desculpa de precisar procurar potássio – ao invés de procurar a bendita titica de galinha na vizinhança.
- Mas ele é que me traiu, ele é que me mentiu, ele é que me agrediu e agride nas redes todo santo dia, minha senhora!
O fato é que tempo foi passando e o que ficou visível foi mesmo o descontentamento geral com a briga – já não importava mais o motivo. Mas agora os almoços de domingo estavam prejudicados pela briga, os cartões de agradecimento dos aniversários, as festinhas das crianças... Todos reclamavam afinal da “saia justa” de não poderem falar as mesmas palavras de 10 anos atrás porque haviam dois lados, duas versões e ninguém gostava de ter que contemplar o mal estar geral fingindo que não estava vendo ou mesmo contemporizar pra não assumir seu lado. Ela olhava tudo aquilo sem acreditar que a verdade – A VERDADE – não importava. Pior – nunca tinha importado. O status social – totalmente envernizado pela hipocrisia de viver – este sim, era importante. Afinal, o que a vizinha ia pensar, a família, os colegas do bairro?
Sendo ou não um anão provocativo, a Ucrânia não merece o massacre. O mundo, as pessoas, NÓS! – não podemos ser regidos só por dinheiro. Meu ex não presta, mas tem dinheiro para turbinar suas fakenews contra mim – As pessoas então esquecem as fakenews e insistem em se fixar na conta bancária. Uma baixaria de mundo, isso sim.
Independentemente da versão adotada, os mais fortes, ao se transformarem em covardes manipuladores da verdade, perdem por dentro. Perdem a vergonha e começam a trair a próxima e a próxima... Perdem a honra, a generosidade, o sentido de justiça. Perdem! – ela pensou.
Saiu do Face, apagou vários contatos do WhatsApp, recomeçou seu perfil no Instagram. Depois descobriu que ele abandonou a garota com quem estava por outra, cheia de seguidores e ainda colocou em votação na internet se o homem deveria ser fiel, dado que “as mulheres quando querem, dão em cima mesmo”.
- E sabe o que é pior? Essa palhaçada bombou!
- É... Quem entende o motivo pelo qual os seres humanos escolhem ser rasos e desprezíveis? – Pensou.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Companheiros da vida”
Ana olha chateada para a “Verdade” de novo. Tem frequentemente muitas discussões com ela. Muitos embates. Muitas brigas. Afinal, ela é tão importante e está sempre escondida, confusa, disfarçada. Ana sempre achou que a “Verdade” era corajosa, que era a salvação. Profundo engano. Sofreu bastante na vida por causa disso. Como ela, a “verdade”, tem coragem de ficar quieta e calada vendo tudo o que acontece? Seus amiguinhos “fakenews” e “mentira”, fazem a festa. Dizem o que querem, fazem o que querem, riem, curtem, ganham rios de dinheiro sendo assim e ela? Deve estar a jogar game no computador... Que desilusão!
Com a “Realidade” também tem problemas terríveis. Não era nos pesadelos que as piores coisas podiam acontecer às pessoas? Tipo a fingir? Tipo para avisar? Por que raio é que a “Realidade” tinha de se armar em importante e fazer coisas que ninguém espera, que ninguém deseja e que só fazem mal e provocam tanto sofrimento e dor? E é que não pára. Parece tresloucada. Inventa um problema, depois outro, outro, outro. É sufocante! Aprendeu as estratégias bem miseráveis, de enfraquecer a alma poderosa das pessoas, devagar, devagarinho, triturando-as por dentro, por fora, por todos os lados. Vai tirando oportunidades de trabalho, depois vem com problemas de saúde e inventa despesas, contas, necessidades, de tudo e por todo o lado. Vai secando a esperança, a alegria, a energia. Sério isso? Que loucura! Venham os pesadelos, que sempre são mais suaves.
Como se não bastasse tudo isto, o maior problema de relacionamento que a Ana tem na vida é com a senhora “injustiça”. Com essa, a coisa é feia mesmo. Já nem conseguem conversar em condições. Ana foi traída por ela tantas vezes que já não confia no seu jeito meloso, arrogante, seu sorriso falso, sua educação hipocritamente perfeita, sua sabedoria patética. “Queria ver esse arzinho tão esperto e essa arrogância, aqui no meu lugar, sua, sua...sua “injustiça” patética!
Ultimamente tem feito amizade com o “talvez” e o “porque não?”. Tem passado bons momentos com eles, aprendido umas coisas boas. Foi uma boa surpresa já que não tinha muito interesse na sua companhia antigamente. São tranquilos, não inventam, desapegados, doces, e têm aberto novos e surpreendentes caminhos na sua vida. Por vezes, com eles, vem também o “deixa pra lá” e o “por esta não esperava” e não é assim tão mau. De vez em quando é bizarro e de vez em quando é gostoso e surpreendente.
Fez as pazes com a “vergonha” e estão de boa. Com a “coragem” e com o “medo” caminha junto todos os dias e tem sido suave e produtivo.
A “dor” e a “saudade”, essas viverão sempre no seu coração, mas já não brigam mais. Ana finalmente entendeu que elas são necessárias e depois de as aceitar, tornaram-se boas companhias.
Hoje, Ana tem um encontro com o “milagre”, a “esperança” e a “sorte”. Precisa saber por onde andam, porque deixaram de aparecer nos encontros semanais. Quer muito lhes perguntar se fez algo de errado, se estão chateados com alguma coisa e como Ana pode resolver isso. Tem saudades deles. Vai tomar uma boa banhoca, vestir uma roupa confortável e fazer um bom prato de bacalhau, daqueles deliciosos que sabe fazer tão bem. Quer recebê-los bem, quer que saibam que gosta deles e os respeita demais. Quer muito que voltem. A vida sem eles não é tão boa...
Toca o telefone. De novo. Sabe bem quem é mas recusa-se a atender. A “fome”, a “miséria”, a “morte” e todos os seus “amigos” sem escrúpulos estão em frente da sua porta. Aguardando espaço para entrar na sua vida e ela, Ana, faz de conta que não os vê, foge deles. Até quando?
Ana Santos, professora, jornalista
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