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2 Contos sobre Telhados e Carnaval


Conto "TELHAS, CARNAVAL E IRONIAS DO DESTINO"

O martelo insistia na madeira: pá pá pá ... Stela já tinha dor no pescoço de tanto acompanhar o serviço no telhado. Pá pá pá ... o ruído era repetitivo e incessante. Ainda outro dia um carrão foi tragado pelo buraco, sabia?

- As pessoas não morreram por um triz, por um milagre...

E lá está o mistério: tanta gente na rua e pela rua no carnaval e das milionárias às mais pobres, ninguém sabe quando é seu fim e como ele será, esteja em que camada social for.

Sempre olhando para os homens, no telhado, insistia: - Vocês já esqueceram a torneira aberta ontem! Vão deixar cair uma pedra em nossa cabeça e aí sim eu quero ver!

Pá pá pá ...

Ontem, na varanda escura, sentiu o zumbido do trio elétrico no ar e logo o som do carnaval invadiu, sua casa, sua vida. Sua cunhada nunca tinha visto o carnaval da Bahia.

- É quando os mundos se misturam - pelo menos se misturavam! - ela tentava explicar.

- Pense no ambulante que arruma uma corda, faz uma "engenharia" e prende sua rede nas árvores da rua? Pense numa caminhonete de alto luxo que foi tragada por um buraco e o homem mais pobre tinha a corda pra jogar no carrão e salvar as pessoas? Pense gente dormindo na calçada pra tomar conta de seu isopor - isopor é a mesma coisa que esferovite! Pense os abadás mais caros, pessoas que jogam suas latinhas no chão sem nem olharem para os que as pegam pra vender, pense em mundos que se visitam independentemente do desejo das pessoas mais metidas e insuportáveis? Imaginou? Bem, esse é o carnaval da Bahia.

Lá de cima da madeira de seu telhado, olhava ao redor e pensava em maneiras melhores de descrever aquilo tudo.

- Ninguém reclama do barulho porque não adianta reclamar.

- Fazem a faxina antes do carnaval, isso... Depois, nem tanto.

- E agora até a música que toca no trio tem patrocínio... acabou a beleza... o trio de Bel cantava a trilha do Ifood no maior carão... Se fosse hoje, quem ia perder tempo com bossa nova e tropicália, se podia ganhar milhões do Ifood?

Pá pá pá ... água gelada para todos...

E ali, ao redor das telhas trocadas, ela via a vida passar, os turistas tão bem arrumadinhos - todos de pescoço vermelho do sol, mochilinha, purpurina...

- Ai gente, coitados dos gringos... Turista faz esse papelzinho estranho no mundo inteiro ou guarda o que tem pra trazer pra Bahia, hein?

- Bom dia! Vi sim que eles largaram a torneira aberta, ontem! E filho feio tem pai? Não foi ninguém. Pelo contrário - disseram que fui eu, é mole?

E o carnaval começou. Agora os Yanomamis, a pobreza, os miseráveis, a taxa de juros, os bandidos, garimpeiros ilegais, os terroristas, prisioneiros - tudo isso entrou no túnel mágico do carnaval na Bahia e só vai voltar a existir de novo na quarta. Todos os horrores permanecem, mas nós não os veremos. As lágrimas, os sorrisos, beijos, tapas e camburão ficam onde não vemos. Onde nosso coração não quer ir, se quer ir pra rua brincar.

- Renato, cuide as pedras pra não machucar ninguém!

- Alô! Doando telhas sim! Tanta gente precisando de uma cobertura...

- Gente, a polícia não pode bater assim nas pessoas!

- Ficou com ele, foi? Ficou com vinte, só ontem? Vixe, que não se dá moleza assim pra ninguém! Depois não reclame de herpes!

Telhas, carnaval, "Brasil voltou" beijo na boca e Ifood - Você já foi a Bahia, nega, não? Então vá!

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Um Carnaval em cada esquina”

Carnaval. No Carnaval ninguém leva a mal. É o que se diz.

Tenho recordações de criança do Carnaval que sempre que as recordo me deixam bem disposta. Na casa onde vivia em menina, existiam umas máscaras muito antigas que eram as que usávamos de segunda para terça-feira. Sim, o Carnaval onde eu vivia era apenas na segunda-feira pela noite. Festas de máscaras, festas de disfarce ou até nada, apenas descansar, fazer uma pausa. Quando se fazia festa de disfarce, fantasia, cada um escolhia a sua forma de ir “diferente”, de estar “sendo” outra pessoa. As máscaras de lá de casa, iam rodando. Um ano usava uma, no ano seguinte usava outra. Nem dávamos muita importância a isso. Já era muito e muito bom. Pegar numa máscara e vestir umas roupas. Quando penso nisso agora vejo que era uma escolha de personagem sem ter noção nenhuma disso. Num ano, fomos todos a casa de uns tios para que eles tentassem adivinhar quem era quem. Foi muito engraçado. Adivinharam quem era cada um debaixo do disfarce, menos comigo. Ainda não sei se não descobriram que era eu ou se fizeram de conta que não sabiam. Às vezes os adultos fazem essas coisas para tentarem dar alegrias aos jovens e às crianças. Na adolescência e no início da idade adulta ainda andei nessa busca de me sentir alegre, de me sentir fazendo parte, em busca de festas de disfarces, de brincadeira, de fantasia. Mas isso foi se esvaziando. Eram mais as chatices, as despesas, as confusões, as desilusões. Esse período do ano foi se tornando diferente. Comecei a ir a casa dos meus pais para não perder o delicioso cozido à portuguesa que minha mãe fazia no domingo gordo. As noites, incluindo a noite de carnaval, tornaram-se momentos de descanso, de jogo de “Buraco” ou “Canasta” e de assistir ao desfile das escolas de samba do Brasil.

Quis a vida que um dia fosse em trabalho ao Rio de Janeiro em época de Carnaval. E foi curioso perceber que nessa época os cariocas desejam fugir da cidade ou se abastecer para ficar em casa bem sossegados, dada a multidão que chega e a loucura de festa nas ruas e no sambódromo. Foi um choque perceber esse lado lunar de um momento tão famoso e desejado para o mundo.

Quis a vida que eu um dia fosse viver para o lugar onde existe o maior e melhor Carnaval de rua do Mundo. Do lado. Ao final de 10 anos ainda estou a habituar-me à ideia. Abastecer a casa para ter alimentos durante umas duas semanas. Estar atenta às datas dos eventos – Furdunço, Fuzuê, Arrastão, Carnaval, etc, - para não me acontecer de sair de carro em momentos que depois não consigo voltar para casa, como aconteceu uma vez, a 500 metros de casa ficar no meio de um gigantesco congestionamento durante mais de 4 horas. Tratar da credencial para ter autorização de circular com o carro, poder sair e voltar do bairro. Poder ir na hora em que passam os trios que mais gosto, curtir e voltar para casa, tudo a pé, sem precisar utilizar os banheiros da rua. Ao mesmo tempo, permanecer chocada com o povo rico que vai todo bonitinho para os camarotes de luxo – a fila que fazem a atravessar a rua é demasiado limpinha e desinfetada em relação ao ambiente; com o povo que fica na rua dançando e bebendo dias seguidos; com o povo que fica vendendo bebidas e comidas na calçada/passeio – com crianças, bebês; com os incríveis vendedores de bebida que carregam um isopor/esferovite enorme e lotado de bebida na cabeça, no meio de uma multidão aos saltos; com os “caras” que rastejam nas ruas por entre as pernas dos foliões em busca de latas de cerveja vazias para vender; com os taxistas, mototáxi, entregadores, empregados de todo o tipo.

De manhã se vê o “custo” físico de uma cidade que se arranjou toda bonitinha para receber 6 milhões de pessoas com sede de festa: o chão lotado de lixo, gente dormindo por todo o lado, cheiro de xixi nos cantos, lixeiros/garis limpando tudo para que a cidade se prepare para mais um dia, policiais e militares trocando de turno. É impressionante a organização, a beleza, mas também o enorme impacto na cidade. E no meio disso tudo, como sempre, logo pela manhã os periquitos continuam a voar, a cantar e a beber a água que os habitantes dos apartamentos lhes colocam nas varandas. Os saguis continuam em busca de comida nos ninhos dos passarinhos ou nas frutas das árvores. Os beija-flores continuam a pousar suas patinhas na cerca elétrica depois de beber água das plantas.

Em que esquina estarei no próximo Carnaval?

Ana Santos, jornalista e professora

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