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2 Contos sobre Tarefas


Conto “ESPERANDO SENTADA”

A Operadora marcou entre 8 e 11h. Odiava esses “momentos nada” porque esperar a ação de outras pessoas lhe parecia um nada disfarçado de alguma coisa. Mas também não podia sair, sem comprometer o suposto horário da visita. Então...

Lá estava ela, sentada, olhando mais ou menos para o nada.

- Você liga 190, denuncia alguma coisa e toda a ação é da polícia – hoje mesmo, ouviram uma briga de casal, chamaram a polícia, obedeceram às regras, ela não apareceu e a mulher foi assassinada pelo marido. Por quê não há um departamento para denunciar a polícia, a telefonista da polícia, o motorista do carro da polícia ou qualquer responsável pela morte da pobre da mulher que pertença à polícia? Por quê a sociedade elege pessoas e depois fica refém dos desmandos delas, sem ação rápida, direta? Que espécie de autoridade aceitável é essa, se a pessoa pega a autoridade e abandona a responsabilidade? Que espécie de candidato falta a debate? Que espécie de eleitor lhe dá votos mesmo assim? Que “deixa que eu deixo” é esse nosso?

Esperar pode ser uma ação que se confunde com omissão, pensou. Agora mesmo, esperava e era uma coisa concreta – tic tac – mas não atender a um chamado, uma convocação, uma eleição era omissão, corrupção. No fundo, no fundo, todos vivemos isso. A vida está cheia de momentos onde trocamos alguma coisa por coisa nenhuma e vibramos ou nem ligamos – pior – trocamos algo que poderia acontecer por algo que tentamos impedir que aconteça. Homens que tentam impedir suas mulheres de estudar, trabalhar, viver e todos os que veem, os vizinhos, os parentes olham, enxergam bem as ações e não acham nada. Ou acham que não devem se meter. Se omitem.

As imagens de manchetes dos jornais cruzam seu olhar e, em pelo menos 50%, ela vê que alguém poderia ter feito alguma coisa. Mas nunca era claro, o que fazer.

- Aqui em Salvador, para quem se liga quando vemos uma árvore sem podar que causa perigo? Cabos roubados do poste? E um menino que não vai à escola? Que não tem documentos? E se ele começar a morar solto pelos matos da redondeza? Por quê a nossa relação com a autoridade se resume a pagar e ficar calado?

- Odeio esperar sentada! Odeio, odeio!

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “A Tarefa”

Ela conhece e acha muita piada a uma anedota antiga. A anedota conta a história de uma tarefa da escola de uma menina. A professora pediu um desenho a cada aluno e a menina terminou bem mais cedo do que todos e entregou a folha em branco. No dia seguinte, quando a professora entregou as tarefas com as classificações perguntou à menina porque ela não tinha feito desenho nenhum e assim receber zero na classificação. A menina respondeu que tinha feito um desenho. A professora disse que não porque a folha estava vazia, sem um risco, nada! A menina então explicou que desenhou uma vaca no pasto comendo grama. O que aconteceu é que a vaca comeu a grama toda e foi embora, por isso a folha vazia.

Ela pensa muitas vezes nessa anedota. É mais do que uma anedota. Umas vezes sente que a menina fez uma traquinice para se dar bem e que o mundo está cada vez mais cheio desse jeito de viver. Outras vezes acha que a menina realmente pode ter feito tudo isso na sua imaginação, mas na realidade, na prática, não ficou nada, por isso, para o mundo ela não fez nada. Tudo aconteceu na sua cabeça, sim, mas o mundo não avança com o que se passa na nossa cabeça, ele avança com o que fazemos, com o que construímos, com os legados que se vêm e que são úteis. É importante, muito importante, não deixar a folha vazia no fim das “tarefas” da vida. Isso a preocupa muito!

Ela se pergunta todos os dias que desenho vai entregar no final da sua vida. O que vai deixar para os outros? Para o mundo? Uma folha em branco? Mesmo tendo vivido e construído mas sem ações que fiquem registradas para os que vêm depois? Ou vai viver o que interessa e deixar “ajudas”, ensinamentos, avisos, construções emocionais e mentais, descobertas, caminhos, que fiquem marcados para que os outros que chegarem depois possam sentir que algo foi deixado para eles, algo foi pensado para eles, algo foi previsto e acima de tudo, tudo o que foi deixado está inundado de amor, mesmo sem saber quem eram e o que seriam? Ela precisa deixar na “folha” o seu amor pela Terra, amor pela vida e amor pelos outros porque deixar uma folha em branco é deixar terra arrasada e os que vêm não merecem isso. Nem a Terra.

Olha a “folha” e começa a organizar-se. Também não pode enchê-la de coisas, de cores, de riscos. Precisa escolher poucas coisas mas que sejam fundamentais para os que vêm. E pensa:

- O que eu gostaria de ter, ver e saber quando chegasse aqui? O que eu gostaria de ver na “folha” deixada pelos que aqui estiveram antes?

Ana Santos, professora, jornalista

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