Conto “L&B”
Ela viu espantada que seu boneco Super B, que lhe foi vendido numa loja que se dizia oficial e que garantia que ele era original, indescascável, inquebrável, inenarrável era apenas propaganda enganosa. A tinta do boneco ficou “fubenta” e de repente, seus pedaços começaram a cair pela casa. Daquele super herói anti-tudo não sobrou nada.
- Não quero nem saber! Vou meter essa coisa num envelope e mandar de volta! Onde é a fábrica? É China, é? Paraguai? Não me diz que é da Coreia! Esse negócio é falsificado!
- Deixa eu ver aqui... vira pra gente ler “made in” algum lugar.
- Made in USA. Made in USA? Made in USA!
Do outro lado da rua, uma outra menina tirou do armário seu boneco, o L. tinha ficado numa caixa que todos tinham jogado de um lado para o outro por um tempão. Levantou a tampa, espiou lá dentro e:
- Será que não quebrou?
Direitinho. Tinha saído um pouco a tinta do cabelo, mas de resto...
- Será que quebrou por dentro? Porque por fora tá bonzinho...
Tirou da caixa, colocou o bonequinho em pé... Tudo funcionando.
- Ei, L, você ainda sabe andar por aí? Bora botar uma pilha em você?
Que tarde ela passou com ele... Mas do outro lado da rua vinham tantos gritos e reclamações que eles entraram na sua brincadeira. Ela parou e ficou ouvindo a vizinha. Ficou com pena dela, coitada. Acreditar que comprava um brinquedo importado caríssimo e quando se olha bem...
- Mãe, acho que o brinquedo da Patricinha ali de frente é “butiquefe”.
- Que negócio é esse, menina?
- Butique de feira, mãe.
- Será? A mãe dela passa aqui falando que é toda certinha...
- Acho que passaram a perna nela...
Viram, de repente, passar um boneco voando pela janela:
- Eheheheh... Vai ver esse aí já pegou o avião!
- Pára, menina! Se eles ouvirem, ainda são bem capazes de tocarem aqui na porta aos gritos!
- Amanhã você deixa então eu brincar com ela com meu boneco L? Eu mostro ele com calma e tenho certeza que ela vai se lembrar porque esse brinquedo aqui tá praticamente novo! A gente ainda vai brincar muito com o L, mainha!
- Deus benza, filha... Deus benza...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
“Pelé, o Grande”
- Mãe?
- Oi?
- Eu quero jogar futebol, quero ser uma grande jogadora, assim, como aquele senhor brasileiro, o Pelé.
- Ai filha, não me diga isso não. Essas coisas não são para meninas.
- Como assim mãe? Coisas fenomenais, grandiosas, movimentos nunca vistos, dançar com uma bola no pé, não podem ser para meninas? Porquê?
- Não é nada disso. O futebol é bruto, perigoso, só tem homem e não tem nada que ver com meninas como deve ser.
- Xiii mãe que linguagem estranha a da senhora. Como a senhora vê isso no futebol? Será que falamos o mesmo assunto? Futebol para mim não é nada disso não. Acho que a senhora nunca viu jogar o Pelé. Se a senhora um dia assistir ao Pelé jogando futebol a senhora vai me entender. Mãe, veja bem, o Pelé no futebol é como Bach, Beethoven, Chopin, na música clássica, é como Salvador Dali, Picasso, Van Gogh, na pintura, como Rodin na escultura, como Gaudi, como Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Shakespeare, Dostoiésvski, como Einstein, Galileu, Darwin, Curie, na ciência, como Aristóteles.
- Filha, você está endoidecendo...De onde você tirou essas ideias? Preciso te levar num médico...
- Por favor mãe, acredite no que lhe estou dizendo...Todos estes nomes e muitos mais me fazem melhor pessoa e o Pelé também. Ele me ensinou a olhar o Futebol como algo extra-sensorial, algo proprioceptivo, como algo espiritual. Tem alguma coisa que me modifica por dentro quando corro com uma bola no pé, existe uma sensação de liberdade muito forte e de determinação quando fujo a todas as adversárias e resolvo todos os problemas que encontro no campo e, finalmente, quando estou prestes a conseguir o que desejo, o gol, me preparo e concretizo com todo o cuidado e respeito porque é também o desejo de todas do time, de toda a equipe técnica, de todos os diretores, de toda a torcida. É muita gente que levo no meu pé e eu gosto disso e sou capaz de o fazer. Mãe não me impeça de sonhar, não me impeça de tentar ser alguém que acha que consegue fazer o que poucas conseguiram. Me deixe tentar pelo menos. E mãe...
- Sim?
- No dia do meu aniversário, que é um domingo, a senhora vem comigo ver o Pelé jogar... Sua vida mudará, a senhora vai ver...
Ana Santos, professora, jornalista
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