Conto “ESSE É O PRINCÍPIO DO FIM”
Ela chegou ao lugar e a primeira coisa que viu foi a devastação. Nem parecia floresta.
- Sei lá o que isso parece...
Viu corpos magrelos perambulando por ali. Tinha umas maçãs nos bolsos que sumiram em poucos instantes. Bastava que a relação entre aqueles olhinhos arregalados de desejo e fome se deparassem com a maçã – ela ia parar correndo nas mãos delas.
Não entendia o que falavam, mas não sumariamente, aquilo não tinha importância nenhuma. Como especialista em comunicação humana, com mais de 40 anos dedicados a ouvir e fazer florescer a comunicação dos outros, ouvir o grito mudo da fome era algo facílimo de entender, interpretar e – se as maçãs dessem – responder.
Olhou o que deveria ser uma floresta – uma das maiores do mundo. Estava “pelada”. Não tinha água limpa no rio, não tinha fruta na mata, não tinha animais, não tinha nada plantado. Tinha ouvido um idiota falando que os indígenas tinham fome porque não trabalhavam, mas aquilo nem parecia uma mata reconhecível para uma urbanóide como ela – que dirá para uma pessoa nativa.
Estendeu a mão e pediu água. Só pra ver qual seria a reação. E foi péssima. As crianças faziam com os dedinhos que não. Aliás, as crianças não brincavam. Ficavam jogadas por ali, olhando as maçãs, mas sem forças para virem ao seu encontro. No máximo... perambulavam.
- É... não tenho outra palavra melhor...
As mais doentes saíram antes, os bandidos foram retirados, a politicagem dos que os trouxeram ficou por ali, à caça de votos futuros dos garimpeiros, dos chefes dos garimpeiros, seus financiadores e todos os tentáculos da máfia do contrabando de pedras e metais nobres pelo mundo. Mas ali... ali dava mais pena, na África também porque a pobreza roubava tudo das pessoas. Por ali só ficava o sacrifício, o amor de um lado e a crueldade do outro.
- Defender esses caras... Honestamente, não consigo...
Numa palestra, se falou claramente que entre os políticos havia SEMPRE psicopatas. Com os olhos pousados naqueles pequenos esqueletos que olhavam suas maçãs, percebendo que muitos não conseguiam mais passar da vontade a ação de pô-las na boca, mordê-las, mastigá-las e engoli-las, ela percebeu que a incapacidade de amar era aquilo mesmo – uma transformação de gente em objeto descartável.
- Como esses curumins...
Pôs um dos meninos no colo e, com uma colherzinha, começou a raspar a maçã, como sua mãe lhe fazia quando estava doente, em pequena. Seus olhos se suavizaram. Tudo era doce: a maçã, o carinho, os olhos do menino, o calor dos dois corpos e o olhar da mãe dele, que acompanhava a cena sentada mais ao longe.
Pediu que a mãe lhe trouxesse o bebê de colo que segurava. Magérrimo. Mas com os olhos nas maçãs. Raspou mais uma e mais uma. Percebeu que o amor toma muitas formas – até de papa de maçã. Percebeu também que quem tinha horror de política tinha que tomar a iniciativa de fazer alguma coisa pelos indefesos – sua inatividade tinha sido permissiva e vergonhosa.
Não chorou, ao contrário – ficou brincando com os curumins, fazendo os mais fortes rirem, raspando maçãs, ajudando as mães a cuidarem de seus filhos no posto, na aldeia, na vida. O que aparecesse ela fazia. Apenas agradeceu pelo momento e por ter saúde para contribuir. Poderia ter sido o fim, mas foi o princípio – para ela, pelo menos porque voltaria diferente de quando chegou, com certeza. Forjada pelo aço da injustiça que viu e que ajudou a denunciar mesmo que com sua pequena ação de raspar maçãs de amor.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Tanto e tão pouco”
Penso em saltenha. Uma das maravilhas da Bolívia! Uma massa deliciosa, que vai ao forno, sabor apimentado e agridoce. Em todos os lugares que vendem comida, pelas ruas de Salvador, elas lá estão, sossegadas, silenciosas, junto dos pasteis, das coxinhas, das empadas, do bauru ou do joelho, enfim, das mil e uma delícias baianas e brasileiras. Como eu ia imaginar que seriam tão gostosas tendo uma concorrência tão forte do lado? Ao mesmo tempo que senti e amei o sabor senti uma vontade forte de aprender a fazer, uma vontade enorme de ser capaz de fazer uma coisa tão maravilhosa como aquela. Quero e vou aprender a fazer e em breve.
Penso em cerca elétrica. Trabalho de homens! Você olha aquilo e realmente não te atrai pelo perigo, pelo trabalho, pelo esforço. Que bom que tem pessoas que o fazem. Você procura e encontra lugares que fazem o serviço com um preço aceitável e fica tudo bem.
Salvador e a Bahia são impressionantes na degradação de materiais por causa da salinidade, das temperaturas elevadas e da humidade intensa do ar. Por isso, fica tudo bem com a cerca até o dia em que você chama a empresa para trocar uma peça pequena de plástico que desgastou e quebrou. Paga uma monstruosidade por 5 minutos de manutenção: o cara sobe no escadote que você lhe leva, ele desaparafusa um parafuso, tira o plástico partido, troca por um novo, aparafusa, desce do escadote. Você arruma o escadote, arruma a chave de fendas. Se o serviço for na zona mais alta e num lugar muito perigoso, precisa aceitar. Mas se tudo acontece num lugar a meio metro do chão, sua cabeça e seu bolso te questionam. Até que decide que pode tentar fazer. Observa como se faz, abre espaço na sua mente para o espaço de ser capaz, acredita que é possível ser feito por você, quer conseguir, aceita se esforçar para aprender e para fazer aquilo. E quando acontece de novo o mesmo problema, seja no dia seguinte ou dali a anos, não chama ninguém. Não sabe se sabe fazer porque nunca fez, mas tenta. E consegue. Se sente capaz, se sente útil, se sente feliz.
Ganhei a coragem que nunca tinha tido e construí uma lista de quereres: velejar, voar, ser peixe, astronauta, programar, amar, cozinhar, editar, cantar, compor, tocar, arquitetar, pensar, ser. Agora vai, agora é que vai. Que feliz me sinto! Senti uma chacoalhada forte - o Metrô parou subitamente. Olho o relógio. 6h47. Como assim? Não é possível! Sou claustrofóbica...me sinto abafada...apertada, encalacrada, enquanto todos tiram fotos para colocar nas redes sociais! Por favor dono do universo, faz este metrô andar, por favor, me tira daqui, por favorrrrrrrrr. De repente só quero respirar, sobreviver,... Arf...arf...arf...
Ana Santos, professora, jornalista
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