2 Contos sobre dizer as palavras
- portalbuglatino
- 5 de ago. de 2023
- 4 min de leitura

Conto “NÃO SEI DIZER QUE TE AMO
Lá estavam os casais de novo, naquele grupo de apoio onde os momentos de silêncio pesado só perdiam para os quebra-paus. A terapeuta até que tentava, mas quanto mais se via nos olhos das pessoas que elas sofriam, menos elas eram capazes de falar.
Um dia, chegou lá uma garota diferente, articulada – ainda que igualmente “entupida” de coisas que não sabia como dizer. Mas logo no primeiro minuto deixou escapar:
- Não consigo dizer que amo. Ninguém. Não sai. Eu me apaixono por dentro, mas simplesmente não sai.
- Você sai com alguém?
- Já saí. Mas logo me vem a desconfiança: Se eu for traída, como vai ser? Aí eu traio logo. Eu venço porque quem trai é que vence, certo?
- Quem trai vence? Mas ganha o quê?
- A disputa, ora.
- Mas... Qual disputa? Se vocês namoram, não disputam nada. Apenas dividem.
- Dividem o quê?
- O amor. Os momentos. A vida.
- Mas eu não sei quando me amam. Por isso não me arrisco a dizer que amo. Ninguém.
- E se você disser...
- Nem quero pensar. Porque não quero que riam de mim.
- Beijar você beija, amar você ama, mas dizer que ama...
- Aí não.
Seu coração tinha sido tomado de assalto por um amor avassalador. Ela queria sexo, mas com amor, beijo, mas com amor, amor, amor... Virou uma perseguição. Via seus olhos e seu coração se enchia de algo que ela não sabia explicar... Um aperto na boca do estômago... Uma palpitação. Quase uma vontade de vomitar. Ela pedia ao Universo:
- Me olha, me olha, me olha...
De repente, aquele sorriso encantador. Os dentes perfeitos, os olhos brincalhões. Seu coração quase parou e depois ficou aos pulos. Ficou estatelada no mesmo lugar, muda, louca com sentimentos que não sabia expressar.
A terapeuta falando: - Ok, não conseguem falar. Mas podem se olhar? Dar uma pista? Vamos então ordenar isso. Quem ama alguém nesse momento, olhe para o chão.
- Quem ama alguém fora daqui, olhe para a frente.
- Quem ama alguém daqui, olhe para ele.
E pela primeira vez ela permitiu que de seus olhos saísse não o desejo, não a raiva, não os ciúmes, mas o amor. Levantou os olhos. Olhou. Ai meu Deus... lá estavam seus olhos, bem em cima dos seus. Derramou amor em ondas, em anéis de fumaça, em mil perfumes. Nunca um olhar falou tão alto sobre seus sentimentos. Ela que fugia de todos, que não tinha palavras, que se trancava no quarto, no WhatsApp, que evitava falar com seus pais, que transava pra esquecer. Ela. Ela mesma. Apaixonada.
E aprendeu uma coisa sobre o amor: Ele se sobrepunha a tudo e falava por si mesmo. Por isso, sem saber como, levantou da cadeira e na frente de todos, sem vergonha nenhuma, disse:
- Te amo há tanto tempo...
E lá ficou olhando, olhando, enamorada de seu amor...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Lamechices”
Lágrima, minha companheira. Meu oceano interior. Com quem respiro e vivo. Que me acompanha na vida. Umas vezes a lágrima que vem de tanto sorrir, outras vezes que vem de tanto faltar. Somos 25 filhos. Meus pais trabalham, nós trabalhamos. É assim a vida à qual devemos estar gratos. Talvez na lágrima tenha meu universo, minhas palavras certas, as palavras que queria dizer e que nunca consigo que saiam pela minha boca. Porque as lágrimas saem na hora certa das palavras que não sei dizer.
Somos muitos. Não temos descanso para dar espaço às palavras. Não dá para dizer todas as que temos vontade. Não sabemos escolhê-las, dizê-las. Elas se acumulam, ficam guardadas, arquivadas. Muitas vezes as frases estão prontas, é só abrir a boca e deixá-las sair, sem pressão, sem medo, sem censura. Sem nada, apenas abrir a boca e deixar o coração falar. Meus olhos, meu peito e minhas lágrimas sabem a minha verdade e meus reais sentimentos. Mas não existe espaço, tempo e também não sei como dizer tudo isso. Não aprendemos a falar, a usar as palavras para comunicar.
Bater portas, bater uns nos outros, gritar, empurrar, ficar calados com cara de tristeza ou de arreliação, foram as “palavras” que aprendemos. As palavras, palavras, que aprendemos foram apenas: “bom dia”, “obrigada”, “me perdoe porque errei senhor Padre”.
Bem, não é bem assim sempre. Se uma mulher me interessa, aprendi a dizer tudo o que acho que funciona, pelo menos que funciona com todos os homens. Isso aprendi bem. Sobrevivência. E, nesses momentos as palavras saem todas, os sorrisos também, minhas gentilezas completas. Sou um show. Acontece que quando aquela mulher aceita, acredita na minha verdade, no meu charme, me sinto o máximo. Me sinto feliz porque meus amigos me olham com respeito e admiração. É a hora de me sentir poderoso. Agora, se a relação com aquela mulher solidifica e ela e a família começam com conversa de casamento, ou eu “deslizo” e faço um filho, este meu lado desliga de novo. Casado, não sei dizer porquê, sei que desliga e começo a desejar as mulheres livres, tanto, que acho que me querem. Mulher presa ao marido não me cativa. E se for presa a mim pior ainda. Começo a perder as palavras, a deixar as palavras repetidas encherem o ambiente: acorda-leva as crianças à escola-leva a sogra ao médico-trabalha-compra alimentos no mercado-leva as crianças à música e à natação-vai para casa-banho nas crianças-jantar-dormir. Nem palavras, nem lágrimas povoam. Mas para fora, para as mulheres livres, tenho todas as palavras.
Eu até já aceito chorar mais nos filmes e sabendo da vida dos outros do que chorar sobre e pela minha vida, principalmente quando caso. Meus filhos estão crescendo – crias de dois casamentos furados - e me pergunto porque não choro, não falo o que sinto por eles, o quanto eles são importantes para mim. Eles me olham esperando as palavras, os gestos, o carinho. Tudo o que, na frente deles, desejo, falo, exponho aos filhos dos outros. Mas com eles, meus filhos, não consigo. Com elas, quando passam a fazer parte da minha vida como minhas mulheres, minhas companheiras, também não consigo. Porque não consigo? E porque nem consigo as lágrimas, minhas companheiras, pois secam quando percebo que era a hora de dizer as palavras que eles e elas merecem ouvir? E sigo porque tudo segue? E vivo porque tudo continua acontecendo como se tudo estivesse bem? Eles e elas não ouvirão as palavras que merecem ouvir porque eu também não as ouvi? Se aqui estou, porque eles não estarão também?
Ana Santos, professora, jornalista
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