Conto ”SILÊNCIO É AMOR”
- Raio de profissão, onde as palavras ganham concretude! – ela resmungava.
Ela tinha muitas profissões – e todas usavam a comunicação falada, escrita, lida, interpretada. Nem os advogados amavam tanto as palavras quanto ela. Por isso mesmo não entendia por que afinal as pessoas insistiam em afirmar, apalavrar, prometer, jurar que iam fazer uma coisa que jamais pretenderam fazer. Era talvez um jeito estranho e irritante de parecerem sociáveis e amáveis por um brevíssimo momento, até que a verdade e o fato se uniam para desmascarar a mentira.
- Estou mandando essa mensagem para avisar que farei uma festinha – já que com a COVID ficamos todos em casa..., mas às 22 horas, por favor, me avise sobre o barulho – a menina disse.
Num dia normal seria um pouquinho menos que suportável porque ela trabalhava com audiovisual também e depois de longo tempo de exposição, o ruído lhe cansava os ouvidos. Havia a Companhia de Gás que furava o asfalto para a colocação de canos, que tinha estado na sua rua – mais ruído – e porque é chato barulho de festa na casa de vizinho mesmo. Mas ok por todos os bons motivos dados.
Tic tac, deixa aumentar um pouco o volume da Tv porque não se ouve nada. 22 horas - oba, vai acabar! Tic tac e o relógio deu 10 e meia, 11, 11 e meia... e nada mudou no volume da festa. Ligou pra dar aquele toque que ela tinha me pedido e ficou louca de raiva – “deixe seu recado”.
...
- O celular deu caixa? Como ela pretendia atender se o desligou?
Os raios de Xangô já caiam em sua cabeça – palavra mal empenhada a deixava mesmo louca.
- Meu Deus, que praga de madrinha! – ela rugia por dentro.
Meia noite, meia noite e meia e parecia que a festa tinha recém começado.
- Que desespero – ela pensava - ao ligar a segunda, terceira e quarta vez. Tentou a quinta. Nada.
Ligou para 156: - Esse telefone é o fim, não resolve absolutamente nada!
Bem, só restou mandar mensagem pra mãe da dona da festa, reclamando. Mas que mãe gosta de ouvir esse tipo de reclamação - e de madrugada, num dia de semana?
- As relações humanas não aguentam falta de palavra, gente! (Se eu pego essa menina que está rindo alto na festa, acho que sou capaz de afoga-la!).
O som, de repente, baixou.
...
- Ai, a mãe deve ter ligado pra reclamar, graças à Deus!
1 segundo de silêncio, 2 segundos... ela caiu dura. Dormiu numa tacada só.
Silêncio é amor. Por isso virou lei.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Um dia cheio”
Ana hoje sabe um pouco mais da vida e das pessoas e não sabe grande coisa. Vive no meio fio, em cima do muro, numa terra sem lei. De um lado, a pobreza e a dignidade. Do outro a riqueza e a cegueira.
A mais de 10 mil km, mesmo assim, é duro de ouvir. Uma menina que talvez nem tenha 20 anos, cheia de certezas ao explicar que finalmente vai poder fazer de novo festa de aniversário, depois de tantas restrições. Que restrições tem ou já teve uma menina que vive a vida sem nenhum tipo de dificuldade? Que não tem preocupações com dinheiro, moradia, trabalho, subsistência? Ela vive neste mundo? Ela ouve as notícias? Já terá ouvido falar da Ucrânia? Se divertindo numa festa, sem qualquer preocupação com o bem estar de “outras” pessoas que apenas desejam dormir, imagina as suas preocupações com o povo ucraniano. Sua vida que interessa. Ana está em choque!
Em choque fica de novo quando abre a porta de casa pela manhã para respirar ar puro...e leva uma baforada de cheiro a lixo, a podre, a cócó (cocô). O que aconteceu no mundo? Tem dificuldade em respirar, quanto mais pensar. Olha em sua volta e não vê de onde vem essa miséria. Vai à rua com medo de ter uma surpresa miserável na sua calçada. Não seria a primeira vez. Mas não, desta vez era na calçada em frente. Uma alma triste e sem vida, durante a noite, descarregou um lixo para lá de miserável ali, ali mesmo. Uma festa de moscas, ratos e sabe lá mais o quê! Foi um pobre? Foi um rico? Foi um pobre obedecendo a um rico? Foi um pobre que aprendeu com o rico? Porque rico nem toca em lixo assim. Ana está “passada”.
Por toda a cidade procura alguém que recolha aquele lixo. Todos a ouvem, todos dizem que sim e o lixo ali fica. Mais um dia e o cheiro diminuiu. Nem sabe se fica contente ou triste. O cheiro diminuir pode significar que ninguém vai considerar urgente, como ela considera. Que loucura de vida!
Começa a ouvir o som de uma motosserra. Afinal, nem tudo são problemas e desilusões. Meses e meses de pedidos, de alertas, de e-mails, de telefonemas, de protocolos, de queixas, de perguntas, de desespero, de medo que a árvore do outro lado da rua caia em cima da sua casa, de si, de crianças que passam todos os dias para a escola, das pessoas e dos carros, terminam hoje. Nossa, que alívio! Que alívio! E começa a chegar a brigada do lixo, os amigos que trabalham limpando as ruas. Hoje é o dia da sua rua. Nossa! Como tudo muda num segundo...às vezes com coisas boas...
Ana Santos, professora, jornalista
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