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2 Contos sobre Comida com Alma

  • Foto do escritor: portalbuglatino
    portalbuglatino
  • 13 de nov. de 2021
  • 5 min de leitura

Conto “COMIDA SANTA”

Tanta gente passando fome e esse desperdício por todos os lados – ela nunca tinha se conformado com isso. Era uma questão que durante sua vida tinha passado de mãe para filhas – quem tinha sentido alguma vez a falta de comida no prato, sabia valorizar e sentir gratidão por poder comer todos os dias.


Seus sobrinhos e primos pequenos, ela nem podia ver na hora das refeições – aquele nariz torcido lhe causava revolta.


- Comida é uma coisa santa, gente! – Sempre falava isso ao “ralhar” com aqueles pirralhos que nunca tinham passado nada na vida e torciam o nariz pra tudo o que era diferente.


Ela? Ai, ai...


Ficava olhando aqueles meninos remexendo a comida no prato e pensava logo na fuga dos escravos, nos “trabalhos” postos nas encruzilhadas com comidas que eles podiam consumir, de madrugada, até chegarem à segurança relativa dos quilombos. Pensava no coletivo ao redor da “comida de santo” e em como nas festas o orixá fica com as partes de dentro do animal oferecido, pra seus filhos de santo ficarem com as partes de fora – e todos se alimentam e repartem o alimento. Era uma coisa aprendida – as pessoas dividiam. Lembrava logo da batata doce de Oxumaré, inhame de seu pai Ogum, que ela lhe oferecia fervendo com dendê...


- Você vai deixar esse menino encher o prato, sem saber se ele vai comer tudo? – Ela ficava louca com o jeito como essa geração parecia nem ligar se a comida fosse parar no lixo.


Antes da pandemia, a Igreja de São Lázaro juntava tanto idoso carente pra pegar pão, mingau... Ali na Igreja de Santo Antônio também. Dava era gente...


Bastou um Presidente ruim e olhe lá o resultado: Tudo ficou tão caro que faltava até o dinheiro pra comprar aquelas coisinhas que dava com tanto gosto pra seus velhinhos... Aliás, agora nem tinham mais tantos velhinhos – tinha era gente de todas as idades, todos desesperados, pegando comida no lixo, no caminhão de pelanca e bofes, dos açougues – e esse menino enchendo o prato pra depois ficar “ciscando a comida”, ao invés de comer e dar Graças!


- Comida é coisa santa, gente! Ensinava, repetia e repisava todo dia.


Um dia, estava colocando umas sobras pra seus velhinhos na bolsa e viu por ali uma sombra. Na verdade uma “sombrinha” bem pequena. Era sua neta de 3 anos com uma banana ainda com casca, na mão.


- Vó, deve ter algum véio dos teus pra comer essa bananinha aqui que eu guardei, ó!


- Você vai deixar de comer a sua banana da sobremesa pra eu dar aos meus velhos?


- Amanhã vem outra banana na sobremesa, vó – disse a menina piscando os olhos “bem explicativa”. – Essa daí pode dar pra seus véinho, viu?


- É velho que se diz, filha.


- Ahn?


- Nada, filha. Deus te abençoe.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Maçã e Banana”

Maçã ou banana eram frutas que a acompanhavam sempre por serem fáceis de comer em qualquer lugar. Tirava da mochila e ia trincando enquanto olhava a vida. Não pensava muito em alimentos, além da preocupação de comer os que eram saudáveis. E de o fazer regularmente. Não sentia nada de especial. Era apenas um hábito e comportamento que a acompanhava diariamente, para bem da sua sobrevivência.


Em dias de reunião familiar, piqueniques da escola ou festas de aniversário de amigos, sabia que iria encontrar comidas diferentes. De vez em quando encontrava um sabor diferente e bem gostoso. Apreciava esses momentos. Parecia ficar mais feliz por dentro. Seu corpo parecia em festa e sua boca gulosa desejava repetir aquele sabor sem fim. Mais velha, procurava saber essas receitas para aprender a fazer aqueles pratos. Para voltar aqueles sabores e aquelas sensações. Para voltar aqueles encontros e momentos tão especiais.


Um dia, adulta, num intervalo de trabalho, um colega que tinha vindo de uma viagem à Índia, contava-lhe o que o tinha impressionado mais nesses dias. Ela foi ouvindo com pouca atenção. Não tinha dinheiro para ir à Índia e não tinha muita curiosidade por outros lugares. Ouvia-o falar sobre paisagens, pessoas, cheiros, cores. Afinal parecia interessante. Seu colega intensificou o entusiasmo quando falou das comidas. O que ficou na sua cabeça foi algo estranho – comidas que, na boca, eram uma mistura de sabores. Numa mesma comida, ter o doce, o salgado, o amargo, o azedo, o picante. Noutras comidas sentir sabores que nem sabia definir. Isso a intrigou e o fascínio do colega ao contar essas experiências a cativou. Essa conversa ficou para sempre na sua cabeça, a partir desse dia. Uns dez anos depois, na cidade onde vivia, abriu um restaurante indiano. Foi. E foi uma profunda viagem de sabores. Um percurso interior, corporal, emocional muito forte. Seu cérebro ficou embriagado com imensos sabores diferentes e deliciosos. Parecia embriagada por alimentos, anestesiada em relação a problemas, seus olhos só viam o belo. Seus pensamentos ficaram mais serenos, mais profundos, mais encantadores. Todas as vezes que ia a sensação era igual. Ou melhor. As pessoas que levava para conhecerem essa culinária, sentiam o mesmo impacto.


Os restaurantes indianos aumentaram, mas nenhum se comparava aquele. Algo especial existia ali. Começou a pensar que para além da comida especial, a pessoa que fazia a comida, deveria ser especial também. Era feliz por ter descoberto algo tão incrível e diferente. Percebia que o mundo era cheio de mundos, muitos deles invisíveis. Dificilmente existia na vida algo mais impactante.


Ana descobriu, uns anos depois, que afinal existia. Sempre existia.


Para o bem...


Quando os amigos a convidavam para comer caruru, em setembro. Aprendeu com eles que a comida era também uma forma de agradecer pela saúde, uma forma de pedir por melhores dias. Aprendeu que a comida era muito mais do que comida. Ou quando os amigos a convidavam para visitar um dos terreiros da Bahia. Ia toda feliz. Em todas essas situações, sabia que ia comer comida de preceito. Sabia que a comida seria feita com um sentido muito forte. Que deveria ser mastigada e engolida com carinho e sentimento. Era muito mais do que “apenas” comida. Enquanto comia e depois de comer, sentia-se diferente. Não sabia explicar muito bem, mas o que sentia era muito intenso. Talvez uma forma parecida com o efeito da comida indiana na boca, no corpo, mas onde o “efeito” ia mais longe. Talvez a alma, talvez a energia, talvez lugares da vida e universo onde nunca tinha estado. Sensações inexplicáveis para os que nunca experienciaram algo semelhante.


...ou para o “menos” bem.


Um domingo, a comida toda pronta e gostosa para o almoço. Seu pai ficou doente de repente, precisou de ir ao hospital. Ambulância saiu com seu pai, acompanhado de um dos irmãos. Ana ficou com sua mãe em casa. Ainda meias assolapadas com o que aconteceu, não falavam. Ana foi à cozinha e viu que a comida estranhamente envelheceu. Parecia uma comida com uma semana de vida. Assustou-se e foi avisar a mãe. A mãe pediu que não falasse nada... Foram para o jardim. Viu a mãe colher flores do jardim e olhar o firmamento pela primeira vez. O que essa comida teria visto, sentido, adquirido?


Comida não é só comida em nenhum lugar, em nenhum momento. É energia, é caminho, é viagem, é amor, é mensagem, é cura. É a vida.

Ana Santos, professora, jornalista

 
 
 

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