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2 Contos sobre Comida

Conto “COMIDA É PASTO. VOCÊ TEM FOME DE QUÊ?”
Engraçado que naquele mundo, às crianças só tinha sobrado tudo o que era pastoso. Elas não tinham mamado muito pra não estragarem os “silicones” das mães, mas poderiam ter comido mais e melhor do que Danoninho, que nunca valeu mais do que um bifinho... Também naquele tempo e País, o bifinho tinha quase o preço do boi inteiro em outros tempos, sem a carestia. Conservantes e enervantes, preços e comidas eram artificiais.
Eu olhava meu pé de pitanga, amigo de meu pé de amora e do maracujá que os caramujos viviam devorando e pensava que mundo haveria no futuro, se as pessoas não queriam mais mastigar coisas sólidas. Laranja virou suco, caju, goiaba, acerola viraram pacotinhos congelados que se batiam no liquidificador, o Mac sanduiche era um falso sólido porque virava pastoso ao tocar na nossa saliva, além do Mac sunday, Mac burguer, Mac galinha, Mac batata – tudo moído, pastoso e replanejado.
Você tem fome de quê? – lembrava de uma música bem antiga, onde as pessoas ainda sabiam do que tinham fome. Ela tinha visto um idoso que queria companhia e que foi enganado por uma gang de acompanhantes que usavam o machismo antigo do coitado pra fazer nudes e depois chantagearem os velhinhos. O que antes era um velho gagá “taradinho” que merecia um tapa e um desaforo, tinha virado um homem humilhado, dando o que tinha pra bandidos que o queriam denunciar pra esposa, filhos e netos. Talvez “o meio” entre o bem-feito e o malfeito... o fato é que certo e errado nas redes sociais era igual ao potinho pastoso da vez. Parece sempre delicioso, mas esconde a armadilha de não exercitar nada, além da gula.
Mais um menino que fala mal. Mais um político que fala mal. Sem oratória e sem língua no lugar, eles se acumulavam na Tv, a cada processo eleitoral. Que armadilha.
O mundo faz propaganda do que quer ser, mas ainda não é, pensava eu. Galinhas orgânicas muito caras, gansos torturados pelo foie gras de quem aceita comer isso, comida jogada fora, pobres jogados fora, lixo jogado fora, ar puro jogado fora, numa capacidade de imaginar um belo mundo salvo, enquanto se destrói tudo.
Minha amiga sabiá estala o bico, em cima da pitangueira. Hora de eu entrar porque ela quer dormir, acomodar seus filhotes no ninho e encerrar o dia. As rolinhas, já nem ligam pra mim – a casa é delas. Fazem cocô pela varanda como loucas, mas isso lá por dentro, em algum lugar, me dá prazer de ver. Há na casa um encanto que pára os relógios do tempo. Temos essa habilidade de parar o tempo, eu e ela. De colher rosas, cuidar de plantas. Penso nas alfaces orgânicas que ninguém quer plantar, só comprar, o trabalho que ninguém quer ter, só consumir e me lembro das italianas lindas que colhem tomates e os vendem em cachos pendurados, com lindos pés de galinha orgânicos e naturais ao redor de seus olhos, mãos carinhosas e roupas comuns. Talvez algum dia o mundo reencontrasse a filosofia da simplicidade.
Aqui, a ilha era a casa e pelo menos isso garantia paz, folhas de chá, passarinhos felizes e alguma cor verde, num mundo estranhamente cinza e rosa artificial de pastosos comprados.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

Conto “Alimentos e vida”
Amar a vida nas manhãs de pão fresco pendurado na porta. Pequeno-almoço com conversas intermináveis que atrasam almoços.
Dias serenos de sopa de nabiças. O paraíso em grelos cozidos com bacalhau, batata e ovo cozido, com um fio de azeite. Talvez um sorriso e quem sabe uma gargalhada num copo de vinho verde tinto. Talvez mais estilo no vinho maduro. Talvez uma recordação emocionante, talvez um silêncio familiar, um café, um cheirinho.
Tardes frias de pão com queijo e marmelada. Tardes quentes de pão com geleia.
Infância de tangerinas e laranjas descascadas e comidas em cima das árvores, em bando. Tapetes de Beiriz de cascas na terra húmida, na aventura.
Natal é polvo e bacalhau, rabanadas, mexidos, a meia noite sonhadora. O carnaval, cozido à portuguesa, arroz doce, máscaras e excessos. Páscoa é cabrito assado, pão de ló, mágoas, rezas, lamentos. Férias de agosto inundadas de fruta direta das árvores, peixe grelhado, saladas, noites de lua cheia, chuva de estrelas. O terraço dos encontros, das conversas, da brisa da noite, da vida. Cadeiras, carinho, convívio. Tudo tão certo, tão eterno.
Amor é comida de fogão de lenha. Amizade é piquenique. Sempre contêm a surpresa do que cada um traz para contribuir...ou não. Briga é figo seco, nozes, copo vazio, falta de lugar para sentar, estio.
A vida é a delícia da sardinha assada na hora, é evitar a sardinha moída, é caldo verde com fatia de broa. É nem de menos nem de mais. É ir, é quase, sem passar a fervura.
Ser muito feliz e saber.
Ana Santos, professora, jornalista