Conto “QUANDO TODAS AS CULTURAS TE LEVAM AO MESMO LUGAR”
Em casa era sempre do mesmo jeito: do nada saíam brigas colossais, absurdas! Era grito pra todo lado, berro, esculhambação total pra, de repente, o carro parar numa esquina, os briguentos darem dois beijinhos e se despedirem com:
- Cuidado, bom trabalho, me liga, te amo.
Todo dia era assim. Briga, discussão e se minha mãe não entrasse no meio, porrada e palavrão. Depois, no “até já”, ninguém nem pensava em ficar de mal.
Era essa a parte boa. O lado da treva, vinha do fato de que, pra que meu pai não ficasse nervoso, todos mentíamos. Nem sei explicar como isso começou, com que idade, mas lá em casa, mentir ficou normal. Mas o mais engraçado era que, porque mentíamos todos em casa, ninguém mentia na rua. Tínhamos mil desentendimentos por falar a verdade seca, ali na cara – mas com toda a dignidade possível.
Foi assim que num dia de muitos desentendimentos com todo tipo de homem machista que existe, passeando com a cadelinha pela rua, ouvi uma palavra maravilhosamente libertadora: misandria, ou seja, trauma de homem, horror. Depois de uma discussão no mecânico, um desentendimento no trânsito, com frases célebres do tipo: “vai lavar um tanque de roupa!” e mais aquelas cantadas insuportáveis do dia a dia, que refrescante saber que aqueles arrepios existiam em outras mulheres, tinham até nome! Misandria, misandria, misandria! Um mantra.
Meu irmão reagiu na hora e ali mesmo começamos:
- Que história é essa de repetir a mesma coisa que os homens misóginos fazem com você, aqui em casa e logo comigo!
- Sai dessa e me deixe, viu? Não comece a reagir só porque um dia inteiro com homens é difícil de aturar!
E lá fomos nós no blá blá blá, dedicados, nos xingando à vontade porque mainha não estava em casa na hora. Minha irmã chegou em seguida, mais estressada do que eu pra alimentar o “bate-boca”.
- E você que não tem coragem nem pra dizer dentro de sua própria casa que sua mulher lhe deu chute daqueles! Seu descompreendido! Frouxo!
- Ói sua vida...
Din don...
Justo nessa hora, chegam painho e mainha. Corre corre. Cada um escondendo seus segredos. Um frenesi daqueles.
- Tudo certo? Fazendo besteira onde, com quem? – meu pai não perdia nunca a mira...
- Que é isso...
Minha mãe chegou mexendo na geladeira, querendo cozinhar. Como a briga tinha sido cortada com a chegada deles, naquele momento me sentei na poltrona favorita e lá me deixei ficar, curtindo os olhos revirados de meu pai, suas perucas estranhas, a fala rascante e a energia explosiva de minha mãe, cozinhando, lavando e passando tudo o que lhe aparecia na frente. Família era mesmo uma coisa estranha... E ser feliz no meio daquilo, mesmo com tantas incompletudes e complexidades era... tudo...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Espera um pouco”
É um amor eterno. Tenho a certeza. Estamos sempre juntas. Enquanto durmo, está perto. Quando acordo, também. Durante o dia, nas horas de trabalho, olha para mim a todo o momento. Fica ali, sossegada. Nunca incomoda, nunca atrapalha. Sempre desejei tê-la por perto e tratá-la como merece. Está por perto mas a parte de a tratar como merece, ainda não acontece como devia. Todas as pessoas me falam nisso. Todas as pessoas me perguntam porque não a trato melhor. Umas vezes não sei dizer, outras vezes o que digo não as convence. Acho que nem a mim me convencem, sejam quais forem as palavras que escolher para justificar algo que digo a todo o momento que quero e nada faço para conseguir ou para dar. É um dilema. Vivo um dilema eterno. Sei disso. E sei que só eu posso resolver, fazer, quebrar, avançar. Mas fico sempre nesse lugar. Olho meus pés e eles não avançam. Olho as minhas mãos e elas não se mexem. Existe sempre algo que ocupa o espaço, a oportunidade, o momento, a liberdade. Pergunto-me muitas vezes se afinal eu apenas te quero ali, junto de mim, apenas para te olhar, apenas para te ter. Apenas para dizer que um dia, um dia vai acontecer finalmente o que desejo há uma vida. Uma vida inteira nisto. Por quê? Porque é que tudo o que sucede na vida te ultrapassa sempre? Ou melhor, eu ultrapasso-te constantemente com outras coisas, tarefas, pessoas. E, no entanto, o meu amor por ti é inquestionável, é supremo, é eterno – já o disse e direi sempre. E tu nunca dizes nada. Tens um silêncio tão doce e compreensivo que me faz te amar ainda mais. Como se, nesse silêncio, me dissesses que sabes que eu ainda estou a tentar chegar ao lugar e ao momento em que avanço. E que me esperas. Que não duvidas do meu amor, do meu querer-te e que sabes que me é difícil quebrar o enguiço. Sim eu sei que é estranho. Sim eu sei que por vezes deve dar vontade de questionar e de perguntar se eu afinal sou verdadeira no sentimento e no que desejo. Já somos tão íntimas que te digo que até eu sinto um pouco isso em relação a mim e aos meus sentimentos.
Durante muitos anos fugi de ti, quando era jovem. Achava-te piada mas vivia outra vida, talvez outros interesses. Depois em adulta comecei a perceber que me sentia bem quando estava perto de ti. E foi quando um dia te visitei, nas ilhas onde brilhas, que me apaixonei de vez e por completo. E também foi aí que decidi que nunca mais viveria sem ti. Que a vida sem ti não teria tanto brilho, tanta alegria, tanta beleza. Era ingênua no início e desisti muitas vezes, tantas vezes quantas as que tivemos dificuldades. Depois vivi um período em que me entregava ao nosso amor quando tinha mais trabalhos e mais dinheiro, mas não tinha tempo para estar contigo. Quando tinha menos trabalhos e menos dinheiro, afastava-me de ti. Não sei se era vergonha, mas imaturidade era, porque para te amar não era preciso dinheiro nem gente por perto. Podia ter feito esse caminho apenas contigo – tu e eu – mas não sabia como se fazia.
Nestes últimos anos, mesmo com dificuldades financeiras, suei para ter dinheiro para te conseguir ter junto de mim. E consegui. Aceito hoje que bastamos as duas e que sozinhas somos capazes, sem gente por perto, e eu serei capaz de te amar completamente. Mas, mesmo mais madura, travo nos avanços, ainda travo na hora de te pegar e de, junto contigo, desbravar o mundo, a criatividade, a melodia da vida. Ainda tenho vergonha, ainda não sei passar a fase de assumir que não sei as notas, ler a pauta, coordenar a mão direita, esquerda e a voz. E tenho medo e vergonha de desafinar. É meu amor, meu violão, peço que esperes mais um pouco. Espera mais um pouco. Por favor, mais um pouco.
Ana Santos, professora, jornalista
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