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2 Contos: “PRECONCEITO SE APRENDE EM CASA” e “Yopie, meu pai da outra família”


Maria Barreira
Maria Barreira

Conto “PRECONCEITO SE APRENDE EM CASA”

Em casa, viu mil vezes seu pai espancar as pessoas. Até ele mesmo. O pai sempre dizia que “batia para o nosso bem, que aquilo era uma prova de amor, que doía mais nele do que em nós.” Engraçado que dia de sexta-feira, a gente já sabia que ia apanhar por alguma coisa que ele, no dia seguinte, dizia que era para o nosso bem. Minha mãe era que mais levava, mas era porque ela tinha que se dar ao respeito, tinha que aprender a respeitar, tinha que crescer, que ser mais inteligente, menos porca com as camisas dele...

Bem, quando eu comecei a namorar, a memória das surras estava na minha vida. Cada surra não vinha porque na sexta os amigos saem pra beber e deixam a família em casa – era porque alguém, de alguma forma, tinha feito alguma coisa errada. Camisa mal lavada, entrar e não lavar as mãos antes de tocar nos móveis, não ouvir a campainha, sorrir para o amigo da casa vizinha, pedir uma camiseta emprestada, convidar a sua amiga pra vir em casa, olhar pra meu pai quando ele falava, gritava, era grosso ou pior – quando ele nos batia. Repeti a mesma coisa sem nem pensar. Minha garota usava uma roupa mais curta e nem sei como passei da cara feia ao tapa e do tapa à surra, ameaça, porradaria total, facadas, morte. Claro, na sexta-feira.

Um dia, na cadeia, aparece minha sogra na hora da visita. Me olhou direto nos olhos – daquele jeito que virava uma bofetada com meu pai, sabe?

- Eu vim aqui pra olhar nos seus olhos e lhe perguntar qual foi o motivo de você matar minha filha.

O olhar dela, direto nos meus olhos, furava mais que as facadas que eu tinha dado na sua filha.

- Eu não sei lhe responder. Apenas me pareceu a coisa certa a se fazer. Eu cheguei mais tarde e ela estava acordada, me esperando, entende? Não era pra ser assim. Não era pra ela me olhar como seu fosse culpado de me divertir.

- Você tinha bebido?

- Ta vendo? Sua filha me perguntou a mesma coisa!

- E você ainda não respondeu. Bebeu? Quanto?

E foi assim, me olhando no fundo do olho, de um jeito que me proibia de mentir que eu contei tudo pra ela: do porre das sextas e sábados, da falta de dinheiro em casa, da dificuldade de dar de comer às crianças, do fato de que eu não ia parar de gastar o dinheiro da sexta e do sábado pra eles comerem e de que ela não podia como mulher, me dizer que o que eu fazia era errado porque eu era homem da casa.

- Filho, o homem da casa era ela. Era ela que sustentava a casa e a família. Sustentava o que você comia. Agora, o homem da casa sou eu, que fiquei com as crianças. Nascer de pinto não te transforma em ninguém diferente de um crianção.

Olhava nos olhos dele, lá bem no fundo.

- Foi assim que meu me ensinou.

- Quando você era criança, o que achava de seu pai?

- Tinha medo dele.

- E o medo te ajudou a gostar dele?

Olhava, olhava dentro de mim. E eu, macho, homem da casa, comecei a ir para o meu lugar de crianção, de imaturo, de preconceituoso. E assassino.

Um dia percebi que só ela me visitava e que aquilo foi agindo em mim, me mudando, até que pude lhe pedir perdão por tudo, por todo o mal.

E ela me perdoou. E mudou a minha vida e tudo o que eu aprendi de errado dentro de casa, com meu pai bêbado, possessivo e violento, acreditem.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Yopie, meu pai da outra família”

Era final de dia. De um dia intenso. Eu estava pela primeira vez noutro país, noutra casa, noutra família, noutro mundo. Eram chamadas famílias de acolhimento, eu a chamava de minha outra família. Um torneio de voleibol para estudantes, em Assen, na Holanda, entre o Natal e o Ano Novo. Todos e todas as atletas eram distribuídos/as por casas de acolhimento. A mim e mais duas jogadoras portuguesas, calhou a família do Yopie, sua mulher e um filhote pequenito. Yopie era indonésio, de uma cor que eu nunca tinha visto, meia cinza, uns dentes brancos marfim. Olhos de paz. Sua esposa, loira, de olhos azuis, lindíssima - a típica holandesa. E o filhote, uma mistura dos dois, um menino lindo, esperto, brincalhão, uma fofura. Sua esposa falava pouco. Mas nada que os gestos não solucionassem.

Tínhamos chegado na noite anterior, diretamente para o quarto, porque era tarde e no dia seguinte já começava o torneio. Por isso, nem tínhamos estado muito tempo com as pessoas, foi só o tempo de nos cumprimentarmos, de eles nos indicarem os quartos, os banheiros e perguntarem a hora que era preciso acordar. Nem deu para ver onde era a casa, como era a casa por dentro.

Tomar banho, preparar tudo para o dia seguinte e dormir. Sabia que finalmente tinha chegado à Holanda que eu tanto queria conhecer, mas até aquele momento era só escuridão na estrada, escuridão nas casas, nas caras das pessoas.

Na manhã do dia seguinte, Yopie bateu na porta do nosso quarto na hora combinada, descemos prontas para sair. Tínhamos o café da manhã nos aguardando. Bem diferente. Um prato com fatias de pão de forma e outro com fatias de queijo, frascos de compota e um frasco com manteiga de amendoim – que amei e comprei para levar para meus irmãos e meus pais poderem experimentar. Vários pacotes de suco que tinham sabor a artificial – ainda sinto os arrotos que dava daquele sabor. Falo-vos de dezembro de 1983. Rapidamente esvaziamos aqueles pratos cheios – fizemos sanduiches para comer e outras para levar porque não tínhamos dinheiro para pagar almoços, lanches ou jantares na rua. Yopie via os pratos vazios, enchia de novo. E a gente esvaziava. Até que a gente pediu para levar as sanduiches para comer durante o dia, e ele trouxe todos os pacotes de pão de forma que tinha na casa. Que vergonha! Na verdade, ele queria trazer a gente para almoçar na casa, mas explicamos que não dava tempo porque os jogos eram praticamente uns seguidos dos outros. Lá fomos, cheias de sanduiches para aguentar um dia inteiro de jogos – eram entre 6 a oito jogos que se jogavam em cada dia.

Outro choque foram aqueles pavilhões super bonitos, super limpos, com vestiários enormes e o espaço de jogo, repleto de quadras, repleto de gente igual à gente, amantes da mesma modalidade, gente feliz por estar fazendo o que amava. Só era estranho ouvir aquelas línguas bem diferentes, ver que  muitos e muitas eram bem mais altos, muito loiros e com olhos azuis. O dia foi longo, cansativo, mas muito feliz. Quase nem dava tempo para comer, com os jogos terminando e iniciando quase sem paragens. Uma loucura muito feliz. Nos jogos do final do dia, vimos Yopie assistindo a gente jogar, quieto, de pé, de braços cruzados. Eu olhava para ele com enorme carinho e pensava: “cara, ele é o meu pai daqui e veio ver-me. Super Cool!” Meu pai verdadeiro coitado, nunca tinha tempo para me ver quando eu era mais nova.

Quando tudo terminou, fomos para casa. Subimos para tomar banho rápido para descer para o jantar. Banho tomado, roupa limpa, desço as escadas. O que vi, o que senti, nunca mais esqueci. A sala de jantar e a sala de estar eram uma só, algo normal agora, mas na época não existia em Portugal. Eu via um espaço amplo, aberto, com luzes amarelas para dar uma iluminação mais calma e dourada, uma árvore de Natal, silêncio, uma música baixa e calma, um cheiro desconhecido mas maravilhoso vindo da cozinha. A mulher de Yopie explicou que ele estava fazendo uma comida indonésia para nos receber. Nossa, tanta coisa diferente num dia. Minha cabeça, meus ouvidos, meu nariz, minha boca e meus olhos tentavam registrar tudo para depois poder contar aos meus irmãos e aos meus pais. Que mundo tão diferente e tão interessante.

Comemos um caril de frango com arroz tostado na chapa, uma delícia. Eu pedi para assistir como o Yopie tostava o arroz, mas mesmo vendo, ainda hoje não sei como fazer igual. Fiquei apaixonada pela comida indonésia.

A conversa durante o jantar foi calma, rica, empolgante. Lembro de me sentir muito feliz, muito encantada por saber que o mundo que eu não conhecia tinha pessoas, lugares e costumes surpreendentes. Não era pior nem melhor.

Quando me fui deitar queria colocar tudo em ordem na minha cabeça. Era muita coisa nova, não queria perder nada, nem queria esquecer de nada. Minha mãe sempre dizia para eu escrever, mas como eu ia fazer isso mami? Talvez depois, na viagem de volta, porque agora o tempo voa, repleto de novidades, repleto de experiências, repleto de vida. E eu preciso e quero viver tudo.

 

Tenho saudades de Yopie, desse pai que a vida me deu. Uns anos mais tarde ele foi meu pai de novo. No mesmo torneio. Desta vez divorciado, vivia sozinho. O filho vivia com a ex-mulher. Tinha menos condições financeiras. E nós, éramos 3 de novo. Aceitou 3 de novo. Mesmo mais pobre, fez e deu o mesmo ou mais – de si. Levou e trouxe, deu comida, foi assistir aos jogos.

Lembro que sempre falávamos pouco. Sorriamos muito. Bastava estarmos juntos e estávamos bem. No meio das jogadas, olhava para ele e via-o sorrindo. No final dos jogos tinha vontade de estar perto dele. Chegava perto, ele olhava para mim, com um enorme sorriso, voltava a assistir aos jogos e ficávamos ali olhando juntos o torneio. Tudo simples, tudo sintonizado. Meu pai indonésio holandês, como gosto de ti.

Ana Santos, professora, jornalista

 
 
 

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