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2 Contos: “PODIA SER PIOR, EU GARANTO!” e “Ida e volta"


Albert Namatjira(1902-1959)

Conto “PODIA SER PIOR, EU GARANTO!”

A noite começou com aquela insônia que de vez em quando atacava sem dó. Ela fez de tudo: colocou naquele programa que dava pra repetir se ela dormisse pra não ficar ansiosa, com medo de o perder. Tinha que ser do tipo “morno”, sem nada de emocionante. Achou. Pronto.

- Travesseiros ok, meu travesseirão linguiça ok, lençol fininho, água, homeopatia – tudo ok

Benção Divina! Dormiu. Mas nada correu bem. Sonhou que a democracia havia perdido lugar nas eleições e que aquele egoísmo normal do governo passado – tipo reclamar do sul da Bahia ter inundado justo nas férias, com ele andando de jet-ski de baixo pra cima - tinha se repetido no Rio Grande. Não se podia noticiar o que estava acontecendo com imagens ao vivo porque havia censura e censores. Tinha que colocar uma musiquinha feita com o tema “Deus Pátria e Família” – havia muitas na ditadura antiga, tipo “Esse é um País que vai pra frente, oh, oh, oh. oh, oh”... e candomblé, umbanda e espiritismo eram religiões proibidas.

Se remexia na cama. Já suava. Seus olhos, mesmo fechados, tremiam. Mulheres trans não podiam fazer xixi (só em casa), homens hétero passavam a mão nas mulheres com olhos de tarado e nada acontecia com eles, dado o machismo total. Mulheres, pobres, negros, LGBTs – todo mundo ferrado. Só tinha homem em Brasília. E do tipo grosseirão. Daqueles que gritam, coçam o saco e cospem no chão.

As mulheres tinham virado serviçais Barbies, atrás dos maridos e sendo chifradas à vontade. As vacinas eram contrabandeadas e eram aplicadas em lugares ermos – mas chegavam aviões e aviões cheios de drogas, embora a polícia reconhecesse que eram “excelências demais” a escondê-las. Joias chegavam como contrabando de várias partes do mundo e nossos bens e território estavam sendo “queimados”.

O Sul – pobre Sul – estava por sua conta e risco antes e depois também. O Congresso pedia ajuda ao STF, mas os ministros eram todos “aposentados” e trocados por pessoas diferentes, que não olhavam a lei como algo a entregar a própria vida para ver cumprida.

Havia impostos de coisas necessárias e isenção para coisas desnecessárias – como armas e Whey protein, por exemplo, homens não podiam mais usar cores como rosa, mulheres não podiam mais usar saia curta. Ah! Malafaia tinha sido nomeado ministro de alguma coisa.

Queria gritar, mas a voz não lhe saía. Não era uma questão de direita ou esquerda, mas de como sobreviver à tanta falta de cuidado, em como levar um agasalho do nordeste até o sul, com os Correios privatizados e cobrando uma nota. Era uma vida de gente pobre e miserável – igualzinho à Argentina. Aliás a briga entre os dois Países tinha acabado. Eram todos miseráveis juntos.

Suando frio, de repente, abriu os olhos e não viu nada de estranho. A TV ligada, apenas. Mudou para o canal de notícias porque tudo lhe era vívido demais – democracia, ufa! – lá estava ela! Mas o Sul estava totalmente destruído, não era sonho. A ambição extrativista brasileira também não era sonho – era apenas atraso mesmo. Era – ainda - aquela gente tapada que achava que as desgraças no mundo iam acontecer muito depois que filhos e netos tivessem morrido.

Só que não.

Tomou uma água, se benzeu e virou o travesseiro ao contrário pra cortar a continuação daquele sonho terrível. Naquele ano tinha eleição de prefeito e ela jurou que não votaria em nenhum candidato que não apresentasse um plano para o enfrentamento dos problemas climáticos da sua cidade porque algo tinha que ser feito para evitar mais mal – ela não aguentava mais enterrar mortos.

- E você?

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Ida e volta"

Queriam que vissem. Que rua linda aquela. Imensa. De um lado da rua, nem dava para ver o outro lado.  Bem no meio, repleta de árvores faustosas, como um mar verde, algumas eram árvores de frutos que deixavam um aroma delicioso no ar. Um céu azul, uns dias. Em outros dias um céu cinza misturado com nuvens brancas, tão brancas como as sextas-feiras baianas.

Passava ali, todos os dias, ao ir e ao vir da escola. Todos os dias. Era um mistério para mim como a rua parecia uma quando eu ia para a escola e parecia outra quando eu voltava.

Quando ia, caminhava pela calçada da casa do senhor Calado. Chamavam-no assim porque praticamente não falava. Eu nunca soube o verdadeiro nome dele. Desse lado da rua tinha a casa dele, a sua oficina, a frutaria, o açougue, a mercearia, a padaria e mil e um mais serviços.

Senhor Calado era o homem dos sete instrumentos. Salvava tudo o que as pessoas da rua queriam deitar ao lixo. Já era uma norma. Quem quisesse deitar algo ao lixo, deixava junto da sua porta. Dali a uns dias, Senhor Calado voltava a colocar no mesmo lugar – mas desta vez parecia algo novo. Que mãos, que talento, que bondade. Não levava dinheiro nenhum pelo seu trabalho. Estava aposentado e decidiu dedicar o seu tempo a consertar, reformar, recuperar e cuidar das coisas, máquinas, o que fosse. Para mim parecia um mágico. Um mágico encantado. Falava pouco, trabalhava muito e com gosto e era um espetáculo o que fazia com tudo. Nunca mais me esqueço do dia em que ele consertou meu skate. Numa habilidade maluca, quebrei o skate ao meio e uma das rodas ficou torta. Não disse nada aos meus pais e levei na mochila, junto com os livros, os restos mortais do skate. Pensei que não tinha solução porque demorou. Mas aconteceu. Um dia quando passava, lá estava ele – o skate. Parecia um skate novo. Incrível.

Quando voltava da escola, caminhava pela outra calçada. A mesma rua, mas parecia outra. Hotéis e restaurantes de luxo, lojas de turismo, lojas de arte. Um outro mundo. Também tinha um homem que me intrigava. Tinha um atelier, fazia umas obras de arte estranhas para mim, para o pouco que eu sabia de arte e de cultura. E pelos vistos era muito famoso. E rico. As pessoas se amontoavam na frente do seu atelier para conseguir uma foto dele, com ele e imediatamente colocavam no seu Instagram. E ficavam muito felizes. Eu, não gostava dele, nem do que ele fazia. Não era a arte dele que eu não gostava. Eu não entendia nada daquilo, mas se o mundo achava que era importante, é porque era importante. Não era isso. Era mais porque ele era antipático, arrogante, distante. Porque se comportava como se fosse melhor do que todos. Porque tinha dinheiro suficiente para si e para ajudar muitas pessoas e não ajudava ninguém. Era isso que eu não gostava.

Esse lado da rua não era do meu estilo. Meu estilo era o senhor Calado e sua magia, sua bondade. Era ter o dinheiro suficiente para si e utilizar seu tempo e sabedoria para ajudar as outras pessoas, sem precisar de prendas, de fotos, nem de Instagram.

Meu tempo de escola, meus anos de aprender a falar, a escrever, a fazer contas, foram maravilhosos na ida e horrorosos na volta.

Viva o senhor Calado!

Ana Santos, professora, jornalista

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