
Conto “SEPARAÇÃO”
Depois de mais de 10 anos, ninguém pensa muito em separação. Eu pensava. Eram vidas tão diferentes que em dados momentos, uma não cabia na outra. Nada se encaixava. Não havia nenhuma ideia de construção, nenhuma ideia acerca de um querer que olhasse na mesma direção, nem que fosse um pouco. Um pouquinho.
Cada vez mais eu olhava com devoção para coisas simples, enquanto via sofisticação demais em coisas dispensáveis; de jantares onde se gastava muito mais do que eu queria e muitas vezes podia, apenas para “marcar os convidados” com molhos, caldos e ingredientes absurdamente caros, até a ação de plantar e colher – que eu amo – e não tinha eco porque era preciso que houvesse alguém para admirar o que ela fazia. Era tão intenso que se não houvesse esse alguém, nada era feito. Ou seja: tudo era, de alguma forma, espetáculo.
Para fora de meu coração, éramos um casal perfeito. Mas na verdade, só “a inveja” que despertávamos era verdadeira. Bobo era quem invejava. Não tinha olhos. Não sabia interpretar sinais claros.
Um dia, ela quis se separar e não vacilei nem um instante. Talvez tenha sido até um momento surpreendente. Veio a surpresa e, logo em seguida, eu me agarrei à proposta e nunca mais soltei. Muito desgaste, mais estresse ainda. Mas a cada provocação, meu Ogum me soprava: “E ser feliz não vale esse sacrifício”? – e eu aceitava.
Demorou um pouquinho, mas alguns anos depois até meu coração floresceu de novo – e eu que achava que não ia acontecer mais... (mas isso já é outra história...)
Foram-se alguns anéis, mas os dedos ficaram todos. A vida mudou, o barco chacoalha de vez em quando, mas a aridez do deserto de sentimentos, brotou de novo e cada vez que eu olho, lá está – vivinho.
Sofisticação é ver os beija-flores no jardim, enquanto a sabiá estala o bico e os periquitos berram nas manhãs...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Parecia Incenso e Música”
"Toda a dor é suportável se sobre ela se puder contar uma história." Li na internet esta frase de Hannah Arendt e lembrei dela.
Visitava-me aos finais de semana. Vinha com uma mala de couro linda e com uma cara de felicidade. Chegava às sextas-feiras, ao final da tarde, como se fosse um pôr do sol. Muitas vezes eu chegava depois e quando abria a porta de casa, era muito gostoso sentir o cheiro do incenso no ar, um dos meus cd’s tocando e algumas velas acesas. Os clichês todos...
Mostrava-lhe a rua, a cidade, a zona do país. Ela, apesar de viver perto, não conhecia nada. Muitas vezes lhe falei que podia ter umas roupas na casa. Escusava de ter de vir de mala e também era uma forma de construirmos o futuro. Ela tinha me dito uma vez que era incapaz de amar mas eu não prestei atenção, não dei valor. Eu lhe entreguei tudo incluindo a chave de casa, quem sabe ela começava a deixar umas roupas. Ela ficou ofendida quando falei nas roupas. Bom, tudo certo. Talvez essa partilha não fosse tão importante para ela como era para mim. As pessoas são diferentes. Ela dizia que nunca iria deixar a sua mãe. Mas eu nunca quis dizer isso. Para todos se comportava como se vivesse comigo, mas para mim era uma visita de final de semana, de 15 em 15 dias.
Um belo dia começou a vir sem a mala. Trazia um saco de compras de papel com a roupa de final de semana. Estranho. Perguntei se aconteceu alguma coisa à mala. Respondeu que as pessoas da rua eram coscuvilheiras. Não entendi. Na vez seguinte, entrava refilando sozinha dizendo que as pessoas da rua e do prédio eram insuportáveis. E foi ficando pior. Até que era tudo errado, a rua, as pessoas, a cidade. Durante muito tempo. Uns dois anos. A rua virou um problema, as pessoas também. Começou a estacionar noutras ruas. Eu comecei a ficar triste e chateada com as pessoas da rua e do prédio. Caí que nem um patinho.
Um dia, do nada, inventou que não podia vir mais. Falou pouco, queixou-se muito, nunca chegou a dizer a razão. Apenas, por telefone, quatro anos se fecharam em: “eu não quero mais isso”. E tu viras “isso” que já “não se quer”.
Passaram uns meses e ligou dizendo que precisava que eu soubesse algo. Eu ainda pensei que era uma coisa boa, mas o que ela queria muito me dizer era que ia viver com outra pessoa. Fiquei chocada com a coragem e a necessidade e nunca entendi o objetivo.
A vida foi seguindo. Um dia, do nada, telefona. Que estava passando na minha rua e que lembrou de saber como eu estava. Caí que nem um patinho. Até comentei que estava super admirada por ela estar a passar na rua que dizia ser tão insuportável. Perguntou se eu estava vendendo o apartamento porque da rua se via um aviso. Eu ri e disse que era o apartamento do lado que estava a venda. Minha profissão estava perdendo regalias e ficar ali já era uma enorme benção. Desligou e eu não entendi nada, mais uma vez.
Eu comecei a fazer caminhadas nos intervalos do trabalho. E, numa época, só tinha espaço para caminhar ao final da tarde. Um dia vi um carro parecido com o seu na rua, um domingo. Espreitei para dentro do carro e lá estava a célebre trava que ela sempre utilizou para bloquear a direção do carro. Amarela, com menos tinta ainda. Pensei que afinal ia muito a rua que odiava para quem vivia a uns 50 km. Se calhar foi ao museu, ou à biblioteca. Comecei a ver o carro estacionado em frente da porta do meu prédio, junto a entrada da minha garagem, aos finais de semana. Numa sexta-feira, estou descendo a rua e vejo um carro subir, do outro lado da rua. Era ela no seu carro com outra pessoa do lado. De novo por aqui? Um sábado de noite, depois de passar um serão maravilhoso na casa da minha irmã, ao voltar, cruzo-me com o seu carro. Eu entrando na garagem, ela estacionando mesmo em frente. Nesse momento percebi tudo. Não eram passeios, não eram coincidências e querer me dizer que “ia viver com alguém” e querer saber se eu ia vender o apartamento também não. Fiquei com o carro parado na entrada da garagem uns 10 minutos e o filme passando na minha cabeça. A rua e as pessoas passaram a ser coscuvilheiras, incómodas, desagradáveis, quando ela se começou a dividir entre o prédio da frente e o meu. As pessoas eram um problema para o seu esquema.
Demorei uns tempos a fazer as pazes com o incenso, com as velas e com meus cd’s, mas passou. Tudo passa. E tudo o que não nos faz bem, precisa ir embora.
Ana Santos, professora, jornalista
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