2 Contos: “OLHA A CABELEIRA DO ZEZÉ” e “Minha vida numa rua”
- portalbuglatino
- 13 de set.
- 7 min de leitura

Conto “OLHA A CABELEIRA DO ZEZÉ”
Era peruqueiro, famoso pelas “obras de arte” que equilibrava orgulhoso no topo da cabeça. Ninguém sabia porque colecionava perucas com topetes, curvas e meneios tão incríveis. Dava cursos sobre perucas: como colá-las, como penteá-las, como lavar os cabelos, sem lhes causar nenhum dano. Aparência externa era mesmo sua especialidade. Até que, de repente, percebeu na loja ao lado, um barbeiro que passou a lhe consumir a luz e o foco.
Era um barbeiro radical porque “usava máquina zero” em tudo: sua cabeça brilhava, desafiadoramente. Eram diametralmente diferentes: enquanto um era especialista em “aparatos exteriores”, o outro mostrava seu pragmatismo e racionalidade recheados de um bom humor e uma ironia tão absolutamente brasileiros... ali, naquela careca reluzente.
De algum modo, suas diferenças migraram de latentes para patentes. Cada opinião do barbeiro era trabalhada com exímia destreza e logo aquele bom humor chamou a atenção de um menino falante que ganhava a vida “resolvendo pepinos”, através de sua habilidade em negociar, seu bom humor em provocar, em dizer-se presente.
O peruqueiro não era mais o único a falar - naquele seu jeito tão complexo de usar as palavras. Engraçado que ele parecia gostar de se ouvir falando porque derramava toneladas verbais por sobre as cabeças de todos, em seu salão.
Um belo dia, aconteceu o inesperado. De algum modo, a forma como ele discordou do barbeiro e do negociador foi além de tudo, do esperado – porque ele, num momento de estrelato verbal resolveu aviltar todos os profissionais presentes, a aula, a escola, os alunos, o bairro, a lógica – derramando horas – HORAS! – de um palavreado pesado e confuso – talvez para confundir os incautos. O problema é que havia tradutores.
Ali estava o menino falante que a tudo sabia explicar, aquele que sabia expor casos, usando um pequeno rasgo de uso da palavra para, em poucos termos, plantar questões nas cabeças de todos:
- O meu nobre colega peruqueiro foi convidado e aqui esteve mais de mil vezes descrevendo o contexto da vida de um boi. Nós pesquisamos e levantamos quase tudo sobre sua vida. Ele viu. Ele participou. Andou pelos currais, até se sujou com a bosta do boi. De alguma forma, porém, em seu momento de falar, perdeu-se do passado, da história, esqueceu da vida do boi, o viu sendo morto e cortado em pedaços em verso e prosa. Olhava interrogativamente para pedaços de carne espalhados e deixando a perplexidade no ar, passou a, energicamente, interrogar os bifes: “Você é um boi? Então muja! Você é um boi? Então paste!
E diante da plateia perplexa, completou:
Viram? Não é, nunca foi um boi! Então, não podia ser morto, nem pode estar morto! Não há crime aqui. Não há culpado!
Aquilo caiu como um raio porque a imagem do boi sendo atacado estava viva, dentro de todos que tinham assistido a tudo.
O peruqueiro não quis dividir a fala. Ficou com ela, se agarrou a ela como o menino que se sente dono da bola, na pelada. Mesmo chutando pra fora, mesmo dando pernada no seu próprio time, ele jogou só. Todos olhando. E ele falou, falou, falou. Culpou o boi por virar bife e inocentou quem o matou. Sua peruca? Imexível. Nenhum fio fora do lugar.
Veio então a esperada fala da senhora, com sua forma profunda de dar explicações - contava histórias. Lá pelo meio de sua compreensão dos acontecimentos ao redor do ataque ao boi, o barbeiro pediu-lhe a palavra e desnudou a verdade. Nada de perucas, formas, externalidades. A verdade. Choque. Para todos na sala, rever a verdade, o vídeo com o boi vivo, pastando, o alguém que chegou para induzir as pessoas a matarem-no, fatiarem-no! Momento feérico, frenético!
Se cortava o silêncio.
E o peruqueiro? Murchou. Não olhava nos olhos de ninguém. Se sentiu preso à sua própria armadilha, sua própria retórica – retumbantemente falsa, manca. Se viu num caminhão de palavras, todas vazias.
Veio o gerente do salão, limpíssimo. Sempre nos chamava a atenção a sua brancura imaculada. Mãos finas e brancas. Branquíssimas. Todos iam concordando com o barbeiro e o peruqueiro, pobre – ficou balbuciando sua fala de horas – HORAS! Aquela firmeza das palavras com que falava anteriormente, diante do obrigatório silêncio de todos, diante dos fatos, virou um tartamudeio – o que transformou todas aquelas palavras – MUITAS! – numa espécie de logorreia, um jato de palavras fora da circunstância dos fatos. Ah, a loquacidade dos fatos!
Todos opinaram sobre o que fazer com quem induziu a multidão que fatiou o boi. Mas sim: havia um boi e os bifes eram a prova inquestionável de sua morte e martírio. Houve o mal.
O peruqueiro? Lá ficou com sua peruca de topetes, curvas e meneios incríveis. Murcho. Ninguém sequer perguntou o motivo dele a ter tão bem colada e uniformemente arrumada no topo da cabeça, com ondas e cachos. Não interessava. A lustrosa careca do barbeiro – esta sim – brilhava com alegria entre os presentes, que a comemoraram e brindaram. Ele que enfrentou perigos. Que enfrentou as curvas, as mentiras, em busca das provas da verdade.
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A criança que passava com sua mãe pela rua, olhou um tanto incrédula para aquela profusão capilar no meio do grupo de trabalho: “De quem é essa cabeleira, minha mãe”?
Ela, sem saber de boi, da agressão induzida, das falas e explicações - como boa transeunte - apenas olhou as ondas e maneirismos do peruqueiro e, lembrando da música antiga, respondeu:
- É do Zezé. E assim entrou-se por uma porta e saiu-se pela outra – quem quiser que conte outra!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Minha vida numa rua”
Sem saber, aquela rua me ensinou a viver.
Rua a que chamávamos caminho, quando era de terra. Agora é de asfalto e chama-se rua.
Agora sou adulta, não sou mais criança.
Uma criança que aprendeu a viver num caminho, virou uma adulta numa rua.
Primeiro os avisos. Antes de saber o que ia encontrar e viver, ouvia os mais velhos. Na maioria das vezes, o que eles diziam me fazia olhar apenas para o que eles me tinham avisado. Entende? Por exemplo, falavam que o caminho era perigoso porque iria estar sozinha e desamparada e, em determinado momento, iria aparecer um cachorro enorme e perigoso em cima do muro de uma propriedade. Era verdade o que diziam, mas eu não prestava atenção a mais nada. Ia caminhando, com medo porque não tinha ninguém, mas também com medo quando aparecia alguém e eu ficava sozinha com aquela pessoa adulta, enorme, estranha. No momento do cachorro, era o terror. Ver exatamente o que me tinham dito me deixava aterrada porque percebia que era exatamente como me diziam. A partir desse dia, sempre que me avisavam de algo assustador, vivia assustada imaginando que seria exatamente como me falavam.
Ir sem nenhum aviso, me fazia olhar para tudo e não olhar para nada. Ir com avisos, me fazia olhar apenas para o que me alertavam. Dizer, quando voltava, como tinha resolvido o que me surgia, me dava também uma noção do que era certo e errado fazer. Se ficassem muito felizes considerava que tinha feito bem e saberia que era para fazer o mesmo numa situação igual. Se ficassem tristes ou aborrecidos, percebia imediatamente que não mais deveria repetir aqueles comportamentos nem tomar aquelas decisões.
Aos poucos, fui conhecendo as pessoas com quem me cruzava no caminho, por isso fui ficando mais relaxada. Quando chegava a casa, dizia quem tinha encontrado e o mundo encaixava quando me diziam que essa pessoa também tinha dito que se tinha cruzado comigo. Aos poucos fui acreditando que aquele cachorro não conseguia saltar daquele muro e nunca iria me atacar, mas demorou. A sua fúria, seu tamanho, ainda me fazem tremer as pernas hoje, enquanto escrevo estas palavras. Tudo o que significava atravessar aquele caminho significava atravessar meus medos, atravessar incertezas, atravessar o terror de me acontecer algo de mau. Algo mau, pensava serem coisas que fariam endoidecer os mais velhos, principalmente meus pais. Nunca pensava que pudesse me doer, ou pudesse me limitar, ou até me pudesse levar desta vida. Para mim, algo mau que me fizessem seria algo que atingiria a eles. Era nos olhos deles que sabia se fazia o bem ou o mal. Era pelos olhos deles que os caminhos eram feitos com dificuldade ou facilidade.
Até que um dia, eles colocaram uma novidade – o silêncio. Riam, estavam felizes, eu estava fazendo o certo. Choravam ou brigavam, fiz algo errado e não o devia fazer de novo. Mas este silêncio não me dizia para onde ir. Um silêncio que se foi impondo, que foi tomando espaço. Comecei a ter de fazer o caminho sem orientação, algo que nunca tinha feito. Nada de avisos de cachorros em cima do muro, nada. Apenas no momento eu iria perceber. Demorei décadas a perceber que esse silêncio era por que sabiam que eu já tinha as ferramentas para enfrentar as ruas sem ninguém ou com alguém intimidador. Tinha ferramentas para lidar com os cachorros em cima dos muros. Fosse esse caminho curto ou longo e o cachorro, assustador ou amigável. Me tornei responsável, autônoma. Nossas relações ficaram horizontais, equilibradas, de parceiros. Não preciso mais dos vossos avisos. Sou capaz.
O cachorrão em cima do muro pergunta por vocês, assim como as pessoas com quem me cruzo. Eu tento encontrar vocês pelo mundo.
Avisos, comentários, silêncio, ausência. Os caminhos do caminho. Qual será a próxima etapa?
Ana Santos, professora, jornalista
Sábado é dia de conto no Bug Latino. Contos diferentes, que deixam sempre alguma reflexão para quem lê. Contos que tentam ajudar, estimular, melhorar sua vida, seu comportamento, suas decisões, sua compreensão do mundo.
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