2 Contos: “O TEMPO E OS PODEROSOS” e “Documentos em hibernação”
- portalbuglatino
- 3 de mai.
- 8 min de leitura

Conto “O TEMPO E OS PODEROSOS”
Ela olhou o jornal e, sem querer, deu um muxoxo – estava realmente cansada de ter que conviver com a diferença entre ricos e pobres no Brasil.
- Um escândalo danado porque a Nike trocou a cor da camisa do Brasil – como se ela tivesse perguntado a alguém o que deveria fazer, ao invés de acionar um batalhão de designers que têm e lançam a moda do momento, em termos de time. Eu, que nem suporto mais essa seleção imatura, sei que os times da Espanha têm camisas de todas as cores possíveis para obrigarem os torcedores a quererem colecionar todas elas – gastando muito dinheiro por cada uma. Ah, mas aqui no Brasil, vira “coisa de governo comunista” ... O que fazer dessas pessoas? Como os homens estão tão imaturos? A minha pergunta: Será que a Nike ainda não entendeu que o fanatismo brasileiro tem “grandes palpiteiros” que se metem em exatamente tudo?
De olho no jornal, franziu os olhos, num dado momento. O escândalo pra o qual ninguém ligou muto foi o do ricaço Collor solto, depois de uma pena de... hummm... 2 dias de prisão. Recorreu por anos e cumpriu realmente a pena de 2 dias de cana... agora está lá na sua mansão de milhões, com tornozeleira, mas – e os crimes? E o dinheiro que ele desviou?
- O que as pessoas comuns diriam de uma pena de 2 dias por roubar muitos milhões? Todos iriam se jogar na carreira de crimes porque no Brasil, o escândalo não falado envolve sempre dinheiro e empresários milionários. Os falados, os que estão na TV, envolvem necessariamente os pobres. Atropelou pessoas com sua Ferrari e a matéria perde a graça em minutos. A polícia inclusive dispensou o assassino. Foi presa porque roubou salgadinhos para os filhos – vai para a manchete de todos os mil programas policiais com os quais as TVs nos massacram. Algum programa foi lá enfiar o microfone na cara do condenado Collor? Ele estava com todas as doenças do mundo - como todo rico - e saiu da cadeia pra ir pra cobertura onde mora.
- Isso deveria ser uma manchete e um escândalo muito maior que a camisa da seleção ou eu sou doida? A CBF, com uma piscada poderia ter mandado a Nike trocar a camisa vermelha por qualquer outra cor – mas quem pode evitar que os ricos fujam da cadeia, no Brasil? A família do Collor é de empresários importantes em Alagoas – depois desses anos todos, ainda tem alguém que acredite que esse falso caçador de marajás foi um produto fabricado pela mídia?
- Se ainda tem gente que acredita que uma pessoa que tem salário fixo como deputado federal tem dinheiro vivo, na carteira, pra comprar 51 apartamentos... A sorte é que esses políticos estão fazendo tanta plástica, botando prótese em tantos lugares, fazendo tantas intervenções que a marca da horripilância está lá, na cara deles. Como uma marca deixada pelo cirurgião plástico pra todos reconhecerem. O Collor está terrivelmente repuxado, parece até oriental. E o outro, o deputado federal – botou uma prótese de dentes, mas não consertou nem a língua, nem a mordida. E fica lá jogando a língua de um lado para o outro, ao falar.
- Como um lagarto!
Em que momento, eles vão entender que tem cada vez mais gente como eu, que estou de olho!
- Mas está chegando a hora em que o voto vendido vai ser tão caro, mas tão caro, que a história vai mudar. Antes era uma dentadura, um sapato; agora já está em dinheiro vivo, material de construção.
- Deus ta vendo vocês, viu? Deus ta vendo...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Documentos em hibernação”
- Dona Ana?
- Diga Rosinda...
- Desculpe a pergunta, eu sei que não gosta de falar nisto, mas...
- Diga Rosinda, pode falar. Já trabalha aqui há tempo suficiente para poder perguntar o que quiser. Diga, diga...
- É que a Dona Ana pede sempre para eu fazer as limpezas especiais na casa antes do final do ano. Até já me ensinou que aprendeu com os japoneses, aqueles senhores de olhos pequeninos, lembra? Pois é, acontece que sempre que separo as coisas que são para doar ou deitar fora, a Dona Ana nunca deixa mexer naquela pasta...e me diz que vai pensar na próxima vez. E como chegou a próxima vez, tenho de lhe perguntar: É este ano que a Dona Ana vai deitar fora essa pasta cheia de documentos que deixam a senhora sempre tão triste?
- Já passou mais um ano? Ai Rosinda, esse assunto é-me tão difícil...
- Eu sei senhora...
Rosinda me avisa que é o momento de enfrentar algumas coisas de novo. Como o tempo voa... que diacho... Recordo os conselhos japoneses para manter equilibrada a energia das casas e tenho vontade de lhes explicar que não posso fazer algumas dessas coisas. “Se desapegue do que não utiliza, do que enche sua casa – falam e escrevem por todo o lado.” Sim, eles têm razão, muita razão, mas os meus documentos não. Como eu posso aceitar seguir seus iluminados conselhos e destruir tamanha riqueza? Podem ser meros papéis que enchem o espaço, há 12 anos, para qualquer outra pessoa, mas não para mim. No Brasil, servem apenas para encher a estante, mas para mim são a prova do que atravessei e construí em 47 anos, antes de vir para aqui. “Lamechas? É mais a quantidade de euros e reais e dedicação que estão acumulados naqueles papéis, com carimbos, selos, autenticações e mais não sei o quê. Antes fosse “lamechas”.
- Esse assunto é tão complexo e triste Rosinda, e sempre que o tenho de enfrentar, lá vem a onda de dor e mágoa. Realmente é como dizem, mágoa é uma água parada choca.
- Ai Dona Ana nem me fale isso. Será que é por isso que os meus vizinhos lá na comunidade têm a sua casa sempre a cheirar mal? Vai ver são pessoas cheias de mágoa.
- Talvez...ou pode ser falta de limpeza mesmo, Rosinda.
- Não adianta Dona Ana, eles parecem gostar. Também nunca ouvem o que lhes digo. Eu só tenho valor aqui na sua casa Dona Ana. Em mais nenhum lugar... Talvez pelo que a senhora passou. Olhe eu não sei como lhe pedir desculpa pelo que lhe fizeram aqui, no meu país, mas Deus é grande, ele vai voltar um dia e recompensá-la. Eu peço todos os dias nas minhas orações.
- Você é uma fofa. Sempre que falamos nesse assunto, tudo volta, volta e volta...
Nem lhe falo porque se a Rosinda soubesse das vezes que fiz figura de lorpa, de inocente e de crente, nem é bom lembrar do que ela seria capaz por mim. Ela não merece saber, porque não faz parte desse tipo de gente que só atrapalha. Rosinda pertence aos milhões de espíritos nobres com pouco dinheiro que esta terra tem.
Como as vezes e vezes que fui à Reitoria da UFBA levar papéis e mais papéis, preencher formulários. Até tive de entregar um documento provando que a Universidade do Porto e a Universidade do Minho, de Portugal, existiam e que os diplomas que eu tenho, vinham de cursos que realmente existiam – curso e mestrado. Nem me dei ao trabalho de entregar documentos do doutorado em Vigo. Cansei de viagens, filas de espera, pedidos de documentos, taxas, tudo isto em Portugal. Ainda teria de o fazer em Espanha? E as caras de pessoas amigas das secretarias dessas Universidades me olhando quando eu pedia esses documentos? “Você veio mesmo do Brasil para nos pedir documentos que provem que existimos? É isso mesmo?” É, é isso mesmo.
- Se fosse comigo Dona Ana, não voltava não. Assunto vem, assunto se resolve. Não volta mais. É que a senhora é feita de outro material. Me desculpe mas seu material precisa ficar mais forte Dona Ana. Quem se mostra assim, no meu bairro, é amassado. A senhora tem de virar essa chave.
Ou como aquele dia que descobri que abriu um espaço no meu bairro que se chamava “Mais de 60”, e eu fui saber o que era – um espaço multidisciplinar para maiores de 60 anos. Ofereci meus serviços – que maravilha, pensava eu, já que podia ajudar, era perto de casa e podia ganhar algum dinheiro. Levei minha capa sagrada com os documentos que provam meu currículo. As minhas “jóias acadêmicas”. Sim porque aqui não basta dizer, você tem de provar cada palavra e experiência com papéis e papéis. Imaginem a cara do menino novo que estudou no estrangeiro, abriu um espaço junto com a irmã, com o dinheiro dos pais e lhe aparece uma portuguesa, quase idosa, com diplomas e provas de anos de experiência aqui e ali. Me perguntou porque andava com documentos tão preciosos na rua, alertando para o perigo de ser roubada. Respondi que não andava, apenas tinha decidido levá-los para lhe mostrar que o que ia lhe dizer era verdadeiro. Era tão fora do normal que ele poderia achar que era mentira. Afinal o efeito foi mais: Como recuso o trabalho desta pessoa? E recusou, amavelmente. Ele e muitos outros. Da mesma forma. Ficando impressionado e depois saindo pelas portas dos fundos. Outros, têm outra abordagem. Como não conseguiam ter essa frontalidade pediam documentos e qualificações que sabem que a pessoa não tem. Como olhar alguém com dentes e dizer que procuram quem não tem dentes. Talvez Rosinda e os japoneses tenham razão e seja hora de me desapegar dessas memórias atormentadoras que me envenenam a alma. 47 anos, em que tudo o que construí, dependeu de mim, do meu trabalho, do meu esforço. Sem “ajudinhas”. E agora a travessia onde sempre falta algo, ou onde tenho qualificações demais. Meus queridos amigos japoneses, como eu vos queria aqui e ouvir vossos conselhos. Imagino que devem ter muitos. Mas desapegar-me deste documentos, não é algo que me anime.
Lá estão eles. Me olham. Rosinda naqueles dias de arrumação, pedindo para ser o momento, as leis e conselhos japoneses me dizendo que eles passaram a ser objetos, objetos que me enchem o pensamento, que me acumulam e intoxicam. Mas ainda não consigo, não posso me desapegar deles, mesmo sabendo que não têm qualquer valor aqui. É como se deitasse fora meu cérebro, meu trabalho, anos de estudo, de profissão. Como se esquecesse os 8 anos de idas e vindas da reitoria, de gasto de tempo e dinheiro, de choro, ânimo, incómodo, humilhação. Senhores japoneses, não posso deitar fora meus papéis, não posso deixar para lá esse caminho de pedras. Mesmo que não tenha nenhum ganho com isso. Tenho medo de depois não saber quem sou, de até eu duvidar de mim, de ficar com demência e nada disso ter mais valor. E isso eu não posso permitir. O que os japoneses e a Rosinda me dizem ser o adequado, o bom para mim, é precisamente o que não sou capaz. Esses papéis vão comigo para o caixão, para debaixo da terra ou para a cremação, não interessa, mas para o lixo é que não.
- Rosinda, talvez você tenha razão. Talvez eu tenha de passar uns tempos no seu bairro.
- É isso mesmo. Olhe Dona Ana, vamos adiar este problema mais um ano, ok? Na próxima limpeza eu lhe pergunto se já é o momento. Entretanto a senhora vai passar um final de semana por mês no meu bairro, na minha casa. Vai ser tanto caruru, tanto abará, tanto acarajé, tanta música, tanto rebolado, tanta união, que a senhora vai ficar “no ponto”.
- Em que ponto?
- No ponto desapego dos documentos e de muitas outras coisas. Se prepare que na sexta-feira, vem comigo.
Ana Santos, professora, jornalista




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