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2 Contos Muito Reais

Conto “ÚLTIMO DESEJO”
O ricaço morreu e viu coisas estranhas em seu velório. Ali, na frente uns dos outros, lágrimas. Mas entre olhares...
- Já vai tarde!
O resumo de toda a sua vida ficou mesmo no velho e bom “já vai tarde”.
De repente, algo quebrou o clima de falsidade e um ser parecido com um anjo de luz lhe soprou que poderia escolher uma de suas coisas para levar ao seu “Juízo final”. Um desejo que ele estava ali para “materializar”. O ricaço não pensou nem meio minuto:
- Meu Porsche!
- Um carro? Quer levar um carro?
- Não é um carro, é um Porsche.
E foi assim que ele chegou num lugar onde não havia luz na rua – as casas emitiam luz. E era diferente e diferenciado porque cada casa emitia a sua própria luz como se a energia daqueles espíritos a constituíssem. Tanto que havia umas casas, no fundo da rua, que eram escuras; mais que escuras - obscuras.
O fato é que ele chegou com seu Porsche e o carro ficou por ali perdido, em meio a tantas luzes diferentes. Ligou os faróis. Nada. Ligou o som. Perdia e muito para o ambiente levemente musical ao seu redor. O Porsche – bem dizer – “poluía o lugar”. O anjo pediu que ele saísse do carro porque poderiam volitar.
- Volitar?
- Parecido com voar. Andar sem precisar tocar os pés no chão. Estou autorizado a lhe amparar enquanto volito.
- Mas então você não me disse nada e eu trouxe o Porsche à toa!
- Mas você não me perguntou nada.
- Mas meu carro aqui é lixo, idiota! Onde vou estacionar? Aqui nessa porcaria de lugar não tem nem rua! Trabalhar com gente incompetente é assim... Você trabalha pra mim? Porque se trabalha, já está no olho da rua!
O ser especial sorria. O Sr. Rico nem sabia, mas aquele era o seu “Juízo Final” e aquela era a sua performance, a sua defesa.
- Como é que dorme numa casa cheia de luz assim? Quem manda aqui? Tem alguma autoridade a quem eu possa obter autorizações especiais? Onde é minha casa? Não me venha com “casinhas”! Tanta luz pra ser um pateta!
- Bem, sua autorização para volitação foi retirada...
- E seu chefe quer que eu ande? Que palhaçada é essa?
O anjo deu de ombros e o acompanhou até a porta de uma casa escura. - É aqui que você fica.
- E o tal julgamento?
- Acabou. Você já provou seu ponto de vista e agora deve experimentar a vida conforme a compreensão de nosso líder, de acordo com suas ações. Aqui. – E lhe apontou um portão caído.
Saiu. Desapareceu. O Mega Rico olhou a casa sem luz, o céu sem luz, a ausência de pessoas iluminadas, seres arrastando os pés na lama, a falta de ar.
- Será que eu esqueci de fazer alguma coisa? Cadê a autoridade desse lugar! Não tem ninguém pra comprar aqui?
Será?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Mentira só na minha boca é que é grave”
- Pai?
- Sim?
- Dois e dois são quatro ainda?
- Como assim?
- Quando o senhor era pequeno, dois e dois eram quatro, não eram?
- Eram.
- E continuam a ser?
- Sim.
- Então porque quando eu digo que uma madeira está molhada, o senhor diz que é uma mancha? E quando lhe peço para colocar a mão e sentir que está molhada o senhor diz que está fria, mas não molhada?
- Se eu digo que não está molhada, não está molhada. Sou mais velho, sei mais.
- Mas o Avô me ensinou a saber quando uma madeira está molhada. O Senhor, que é filho dele diz outra coisa. Ele não ensinou o senhor da mesma forma que me ensinou?
- Depois conversamos melhor.
- Pai?
- Sim...
- Mentir continua a ser feio?
- Claro. Já falamos sobre isso. Não se mente. Mentir não é um comportamento de pessoa honesta, educada, de boa família, de bom profissional, de um bom ser humano.
- É, o senhor sempre fala isso.
- E sempre falarei. Mentir, não só é feio como pode ser ilegal, pode ser crime, pode ser corrupção. Mentir envolve crimes graves na sociedade. E os mentirosos são pessoas que devemos evitar na convivência.
- Então porque o senhor fala bem de tantas pessoas que mentem?
- De onde você tirou isso?
- O senhor ama Presidentes, Ministros, políticos, futebolistas, treinadores, que mentem todos os dias, mas o senhor não admite nem meia mentira em mim. Porquê?
- Depois conversamos porque agora tenho de trabalhar.
- Pai?
- Sim...
- O senhor ama minha mãe?
- Muito.
- Sempre amou?
- Sim
- E quem ama não trai, não é isso que o senhor me ensinou?
- Sim.
- Então porque o senhor estava aos amassos com uma mulher no seu escritório quando eu fui lá para lhe dizer que tinha tido nota máxima em matemática?
- Você viu mal...
- A mãe também viu mal porque foi por isso que ela pediu o divórcio.
- Depois conversamos porque agora estou terminando um trabalho.
- Pai?
- Sim...
- Se os casais podem se divorciar quando não pensam da mesma forma e não se entendem, também podemos nos divorciar de outras pessoas?
- Penso que sim. Mas porquê essa pergunta tão estranha?
- Porque eu me quero divorciar do senhor. Quem sabe a gente se entende melhor como divorciado. É que o senhor é mais simpático e leal com a minha mãe desde que estão separados. Eu prefiro também estar divorciada do senhor. Quem sabe o senhor fica mais verdadeiro. O mundo que o senhor me ensinou e ensina é muito confuso e cheio de regras difíceis para mim e para o senhor e para todos com quem convive ou gosta nem existem regras – fazem o que desejam. Não acho isso certo. Me desculpe, mas informo o senhor que vou pedir o divórcio.
Ana Santos, professora, jornalista