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2 Contos: “FÁBULAS DA VIDA REAL” e “Era uma vez uma montanha”


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Conto “FÁBULAS DA VIDA REAL”

Ela ficou ali sentada, ouvindo as pessoas se enfrentarem porque nada ali fazia sentido. Primeiro porque colocavam como ideologia, a justificativa da existência ou não de qualidades nitidamente pessoais como dignidade e honestidade – coisa ridiculamente repetida pela vida, embora inútil. Parecia que a repetição constante mudaria o curso da compreensão do contexto, mas ela conhecia pessoas sem ideologia nenhuma que poderiam trabalhar ao lado Aristóteles e outras, que deveriam ser alijadas de qualquer convívio social e que falavam sobre as "inúmeras qualidades dos políticos" da sua convivência.

              A vida real muitas vezes desenha fábulas que recontam a vida e, ainda hoje, uma delas se desenhou na minha. 

              De repente, o ar condicionado do carro parou de funcionar. Mexe-se aqui e ali, aumenta-se a potência, repete-se: quebrado. Há anos – muitos – um mecânico que consertava meu carro reclamou que não tinha entrado na faculdade que queria e iria parar de estudar. Estava – como se diz na Bahia – “abusado” com o estudo por não ter conseguido.

              - Você queria entrar em qual escola?

              - De direito.

              - E pra qual você entrou?

              - Administração. Mas o que eu vou fazer com esse curso?

              E calmamente, enquanto ele mexia no carro, expliquei que até podia ser bom pra sua oficina, que ele poderia aprender a administrá-la cada vez melhor. Falei, falei. Tanto, que ele ficou na escola de administração, afinal.

              Passaram-se muitos anos. Muitos. Hoje, quando o ar não funcionou, nem pensei duas vezes. Liguei pra ele. Mandei mensagem. Demorou a responder... Desisti e fui lá logo. Precisava de alguém de total confiança para consertar meu ar.

              - Marcos, me diga um técnico de confiança total.

              - Oh, professora, vá em Denílson, ali perto do Atacadão e diga que eu estou dizendo pra ele te tratar com carinho.

              Abraços, carinhos.

              Junto com o meu carrinho – na minha opinião, totalmente adequado à largura das ruas estreitas de Salvador - chegou um Jaguar. Jaguar! Preto! O cara parou, não olhou pra ninguém e pediu pra colocar gás no ar condicionado dele. Quando brinquei e falei que o carrão e o carrinho estavam com a mesma doença, me olhou com aquele nojinho rico ridículo. Aí reclamou do preço e ouviu que o preço era o mesmo para o carro dele e para o meu. Hummm, não era gás. Era problema elétrico. Bobina. Foi embora amuado.

              Minha vez. Ao contrário daquela empáfia ridícula, relatei o problema, a luz que não acendia, o ar que não saía, que parecia entupido. O técnico ali, ouvindo, ouvindo.

              - Ok, já sei! Aqui é igual a médico. Tem que dizer o sintoma. Compre aqui essa tal peça – Resistência.

              Lá deitado no chão do carro, falamos da postura tão distante dessa nova geração e o exemplo foi – claro – o comportamento bizarro do menino do Jaguar.

              - Viu que ele nem olha pra gente? Viu que ele tentou desvalorizar o meu trabalho, quando eu dei o preço? Se a senhora tivesse um Jaguar iria perder seu tempo desvalorizando o trabalho de uma pessoa que lhe deu um preço honesto? Viu como ele me desprezou?

              - Ele desprezou todo mundo. Desprezou o fato de eu ter comparado o meu carro com o dele!

              - É. Mas os dois levam vocês pra onde querem ir. Igualzinho.

              E assim, deixei a oficina dele com o carro novinho e sem nunca mais pensar naquele homem como técnico, mas como amigo. Não pude deixar de pensar como o menino do Jaguar saiu muito mais pobre do que eu, que confiava em um grande amigo quando entrei, tendo saído de lá confiando plenamente em duas pessoas – e isso no mundo de hoje!

              Minutos depois, em casa, vendo a CPMI, os deputados apontando a corrupção, esfregando a corrupção na cara do corrupto, sorriu: ainda haveria muitos que iriam continuar fazendo PIX para miliardário com lábia pra fazer uma seita, iriam dizer que era mentira, que era invasão alienígena, que era coisa de quem quer prejudicar, maltratar o maior brasileiro nascido e criado no Brasil. Como o menino do Jaguar, olham sempre para direção errada, não reconhecem a verdade, não perguntam nada e principalmente, não se envolvem com a vida real. Ela está ali, te olhando, te encarando, se esfregando na sua cara. Não é que você não a veja. É pior. Você não a quer ver. E assim passa a sua vida de ilusão. Você se entrega até o ponto de nao se reconhecer cometendo crimes, E as vidas passam num segundo, sem que um monte de meninos do Jaguar, aprendam nada com ela, nada.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Era uma vez uma montanha”

Era uma vez uma menina que vivia numa aldeia muito pequena, algures num canto deste mundo imenso. Cedo aprendeu que tudo era de todos, porque eram muitos e, da comida à roupa e calçado, tudo tinha de ser gerido para todos se alimentarem e estarem vestidos de forma adequada. Não existia a “sua roupa, seu quarto, suas coisas”. Isso ela nem sabia que existia no mundo porque tudo era junto e misturado. Tudo pertencia a todos, tudo era de todos, tudo era negociado e acordado e decidido por todos. Isso incluía irmãos, tios, primos, amigos da família, primos em segundo, terceiro, quarto grau.

Durante a infância e a juventude aprendeu as coisas boas dessa situação: festas tinham muita gente da sua idade para brincar, sempre existia alguém que resolvia os problemas que surgiam, a vida era viva, sorridente e animada. Sempre tinha alguém que amava poesia, ou a literatura, ou a natureza, ou a culinária, ou a arte, ou esporte, ou artesanato, ou música, ou carpintaria, ou escultura, ou história, ou as estrelas, ou física, ou química, ou biologia. E como cada um tinha um interesse, cada um ia falando, ensinando e apaixonando os outros e todos foram se educando, se enriquecendo, se melhorando. Em cada conversa existia sempre uma novidade, algo que acrescentava. Tudo isso mantinha o ambiente rico, sorridente, agradável, amoroso, respeitador. Todos se respeitavam, todos se melhoravam, todos eram felizes.

Um dia aconteceu um terramoto terrível naquela aldeia. Tão terrível que, deixou as casas quase todas pobremente habitáveis e colocou uma montanha monstruosa no meio, dividindo a aldeia em duas. Assustador. Poucas pessoas morreram, o que foi considerado um enorme milagre. As pessoas da aldeia se juntaram para tentar perceber os danos causados por esse fenômeno da natureza, quem morreu, quem perdeu casa, quem ficou ferido, doente, etc. Perceberam que os terrenos perderam todas as árvores e as colheitas foram destruídas, as casas ficaram apenas com as cozinhas, banheiros e salas habitáveis.

A menina perdeu os sentidos durante o terramoto e quando acordou ficou muito confusa. Não conhecia o lugar, não encontrava ninguém da sua família. Começou a chamar por um, por outro, depois gritava, depois foi perguntando às pessoas que se cruzavam com ela, mas essas pessoas também estavam tão preocupadas com seus familiares que não lhe davam atenção nenhuma. Teve vontade de fazer xixi e não sabia o que fazer, nem onde o fazer. Viu um lugar isolado e foi fazer o seu xixi, desesperada. Quando terminou percebeu que, não muito longe dali, uma velhinha estava sentada numa cadeira, olhando aquela montanha na sua frente. Aproximou-se da velhinha e perguntou:

- A senhora está bem? Sabe onde estamos? Eu não sei o que aconteceu. Quero encontrar a minha família e não sei onde ela está. Também não sei o que faz aqui esta montanha. Quem é a senhora?

- Calma, calma – disse a senhora – uma pergunta de cada vez. Essa pressa não te ajuda querida menina.

A menina parou de falar, começou a chorar.

- Não, não chore não! Não a quis assustar. Apenas não fique nervosa, nem preocupada. A vida é assim. Uma hora é linda, noutra hora menos linda. Apenas isso.

- Mas eu preciso da minha família. Sem eles não sou nada, não sei quem sou, não sei o que fazer.

- Isso é o que aprendeste, isso é o que julgas ser, mas pode não ser assim.

- Não! Eu tinha tudo, tudo o que desejava. E agora não vejo nada do que tinha. Quero recuperar o que tinha.

- E se não existe nada para recuperar?

- Eles morreram todos? Se perdeu tudo? É isso que está me dizendo? Não....

- Calma. Sente um pouco. Beba um pouco de água. Escute.

A menina sentou numa cadeira do lado da velhinha, bebeu água e tentou respirar mais lentamente.

- Querida menina – começou a velhinha – talvez seja preciso aprender coisas novas. Aconteceu um terramoto. Você viu e sentiu não foi?

- Foi...

- Penso que você foi a única da sua família que ficou deste lado. Todos os outros estão do outro lado da montanha.

- Então compreendi. Obrigada e adeus. Vou subir a montanha para os encontrar.

- Espere. Escute. Esta montanha nunca mais vai desaparecer e não permite que você chegue ao local onde todos os seus estão. Ela surgiu para os dividir. Já ouviu falar em destino?

- Não me diga isso...

- Escute. Talvez não seja assim tão mau.

- Não! É horrível. Eles são tudo para mim.

- Menina, escute. Do outro lado da montanha foi dito que quem provocou o terramoto foi você. Todos deste lado sabemos que isso é mentira, que é uma loucura, mas algumas pessoas passaram essa mensagem. E todos acreditaram do outro lado da montanha, incluindo a sua família. Infelizmente acreditaram. Você não pode impedir. Ninguém pode impedir no que os outros acreditam.

- Mas que loucura é essa? Isso é verdade?

- Desculpe menina, mas é a verdade sim. Então eu lhe pergunto: você quer ir para um lugar onde consideram você uma pessoa má? Uma pessoa que você não é? Nem quer ser?

- Mas é o meu lugar, de onde sou, de onde venho, onde pertenço.

- Isso tudo é passado. Você terá de ser forte e começar sua vida de novo a partir de agora.

- Não consigo.

- Escute, eu vou lhe dar uma oportunidade de subir a montanha e olhar o mundo que agora existe do outro lado. Se depois quiser ir para o outro lado, vá. Se perceber o que te digo e quiser ficar do lado de cá, você vai ficar bem, eu te prometo.

E assim foi. A menina subiu a montanha correndo, feliz por poder ver todos os seus e por poder voltar à vida que tinha e tanto amava. Chegou ao cimo, sentou e ficou assistindo a vida dali. A velhinha disse que ela poderia ouvir tudo e ver tudo o que desejasse e ninguém iria perceber. Tinha pouco tempo por isso precisava aproveitar bem cada segundo. Ficou muito feliz por ver de novo os que sobreviveram ao terramoto. Pareciam felizes. Ficou feliz. Pediu então para ouvir o que diziam. Pareciam felizes da mesma forma, mas foi percebendo que sempre que falavam dela não falavam coisas boas. Teve vontade de descer a montanha para lhes explicar que estavam errados. Como era possível acharem que ela seria capaz de tamanha desgraça. Quem teria dito essa enormidade e por que razão? Tentou descer para resolver o mal entendido mas não conseguiu. Lembrou do que a velhinha lhe falou, de que as pessoas escolhem o que pensar e ela teria de aceitar. Que nada poderia fazer para alterar isso. Sentiu um pouco de tristeza mas também viu que eles estavam todos bem assim. E se sem ela viviam bem, se não fazia falta, então entendeu o que precisava fazer. Respirou fundo, levantou-se e desceu a montanha. Percebeu o que a velhinha lhe disse. Teria de começar de novo, daquele lado, do zero. Entendeu e aceitou que era melhor ficar num lugar onde não se tem nada do que num lugar onde não se é amada.

Quando chegou junto da cadeira da velhinha, a cadeira estava vazia e tinha um bilhete dizendo:

- “Menina ficaste sem nada, mas um dia vais entender que isso é tudo. Fui ao lago pescar um peixe para comermos no jantar. Descasca um inhame e coloca numa panela no fogo, a cozer com água e sal. Quando eu chegar, esse inhame estará cozido e o peixe e um tomate serão o nosso jantar. Terás uma sossegada noite de sono depois de um bom banho quente.

E em cada amanhã enfrentaremos o que vier.

Ana Santos, professora, jornalista

 


Imagem: Andrea del Verrocchio


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