top of page

2 Contos: “EU E MEUS AMIGOS DO PRÉDIO" e “Sei que nada sei”


Christina Motta
Christina Motta

Conto “EU E MEUS AMIGOS DO PRÉDIO"

- “Burra, besta, quadrada, triangular, retangular”!

- Mais burro é quem me diz!

Sua infância - com os colegas do prédio que brincavam na garagem todos os dias - tinha sido recheada de brincadeiras e – às vezes – a coisa “descambava”. Claro que nada parecido com o que as pessoas dizem agora.

Não havia esse negócio de: - Quero que você morra ou eu vou aí jogar uma bomba em você; vai ser cancelada por respirar ou seja lá o que for, nunca, jamais e em tempo algum poderia fazer parte do nosso repertório. Minha mãe me levaria até a casa dos meus vizinhos pra pedir perdão, com certeza.

Mas até hoje, não consigo evitar. Se alguém fala “burro” perto de mim, o pensamento “mais burro é quem me diz” me alcança. Na hora.

Atualmente, cada vez que se abria um jornal, lá estavam eles - os xingamentos. A Câmara de deputados parecia um rio cheio de piranhas assassinas, lotadas de bocas cheias de impropérios e toda sorte de coisas desagradáveis e inadmissíveis – uma ameaçando a outra.

Engraçado lembrar. Na minha infância, havia o Fernandinho – um menino com cabelo “reco”, raspado ao redor da cabeça com apenas o topo da cabeça com cabelo. Também era chamado de “Príncipe Danilo”, tipo cabelo de recruta do exército de antigamente. Quando esse Fernando ultrapassava a linha da minha paciência, batendo na minha irmã, por exemplo, eu puxava aquela franja até meus dedos doerem. O moleque chegava a ficar vermelho. No dia seguinte, ninguém pensava mais naquilo, todos acordavam amigos de novo, brincávamos e pronto.

Mas nada mais era assim. Bastava você insistir em discordar e lá estava a resposta: quem não obedece ao líder, ao mais poderoso, não pode mostrar sua opinião. Se ousa, não pode continuar amiguinha de ninguém. O “chefão” aparta todos.

Se aparecesse um Fernandinho na minha frente hoje, só haveria o pedaço “burra, besta, quadrada, triangular, retangular. As respostas possíveis: Mais burro é quem me diz - estavam sendo paulatinamente retiradas do mundo. As pessoas estavam cada vez mais acovardadas, parecia mentira.

- Tsc, tsc, tsc... estalou a língua, descascando uma banana e a dividindo com a sabiá, no quintal. Esse pessoal nunca cresce, afinal. Brincar só se for com a bola deles pra gente ter que fazer, ter que obedecer, ter que seguir. Isso tudo só pra tocar na bola, veja só...

Sentiu saudades das ausências, mas percebeu também que mesmo estando mais só, ela tinha algo incomparável: espaço.

É... valia a troca...

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV

 

Conto “Sei que nada sei”

É confuso, mas vou tentar explicar. Ana nasceu e viveu num país. Onde estudou, construiu uma carreira segura e obteve até alguns resultados bons para o seu país.

Um dos trabalhos que tinha era uma paixão que adquiriu desde criança – o voleibol. Desde os 11 anos que aquela forma de fazer as coisas a maravilhava. Se apaixonou totalmente e com isso veio um enorme interesse em querer saber tudo, de tudo. Sempre que podia, assistia a treinos, a jogos, a filmes, a documentários, lia artigos, revistas. Qualquer coisa que pudesse ajudar a saber mais, podia contar que ela tentava saber. Foi jogadora, treinadora, professora, árbitra.

Um dia, surgiu um novo esporte, o Voleibol de Praia. Parecia igual e mais fácil, porque era na praia e apenas com duas pessoas. Jogou, amou jogar. Um dia virou treinadora de Volei de Praia, também. E percebeu que era totalmente diferente. Novamente mergulhou no que havia de livros, de artigos, de jogos, treinos, pessoas, experiências. Fora dos horários dos treinos e jogos, assistia a treinos e jogos de outras duplas – femininas ou masculinas, jovens ou adultas, experientes ou novatas. Aprendeu com as duplas do Tênis. Sugou tudo o que pode. E conseguiu coisas importantes.

Mudou de país, aos 47 anos. E tudo mudou. Tudo o que diz está errado, ninguém respeita o que sabe, nem sua experiência, nem sua forma de ver e de saber.

Fez cursos de treinadora, de novo, porque os cursos que tinha feito no seu país não tinham valor nenhum ali. Nas avaliações viam sempre o que não tinha, o que lhe faltava. Não entendiam sua linguagem, não a entendiam. Pensou em começar um time, mas sempre existia um problema, a falta de uma autorização, havia sempre algo que ela não tinha. Um dia resolveu fazer um curso de arbitragem de voleibol de quadra. Quem sabe dessa forma consegue se manter fazendo parte desse mundo que tanto ama. Já tinha feito cursos de arbitragem e de treinadora no seu país, só que ali não tinham qualquer valor. Fez o curso. Fácil. A avaliação final era arbitrar naquele final de semana. Tranquilo. Todos os alunos foram, a coordenadora do curso informou como seria. Antes do início dos jogos, a coordenadora chamou-a e disse-lhe que as pessoas estavam muito resistentes a aceitá-la para arbitrar. Mas se ela se sentisse confiante, tudo bem, ia confiar e colocar a arbitrar. Não entendeu as perguntas. A coordenadora estava fazendo as perguntas aos outros alunos? Ou era só ela o problema? Claro que disse que era capaz. Não só era capaz como aquilo era fácil. O que tinha de difícil para ela arbitrar? Arbitrou anos e anos, jogos, em aulas, em treinos, em campeonatos, no seu país. No seu país. Esqueceu esse pormenor.

Foi colocada na função de juiz de linha, num jogo. Foi colocada a juiz de linha noutro jogo. Percebeu que muitas vezes o árbitro principal desobedecia à sua informação, aos seus sinais com a bandeirinha. Engraçado, parecia mais uma dança de poder do que o interesse em arbitrar bem, de forma justa. Ela informa que tocou no bloqueio mas o árbitro achava que não. Porque ela estava ali? Depois uma outra árbitra foi lhe fazer um desenho num quadro explicando o ABC do Voleibol. Tudo ok. Não custa deixar as pessoas sentirem-se importantes.

Até que foi chamada para ser segundo árbitro – responsável por várias coisas, entre elas, a rotação dos jogadores, os toques na rede, as faltas de pés. Tranquila, feliz, começou as funções. Começou o jogo. Em determinado momento, percebeu que todas as pessoas que estavam a ser avaliadas, os árbitros experientes e a coordenadora, estavam atrás de si, sentados, todos juntos, rindo dela, criticando, debochando. Gelou. O que isso queria dizer? No final do primeiro set a coordenadora vem lhe dizer que uma das equipes fazia falta de rotação constantemente e que ela não marcava, portanto afinal não sabia nem as regras da modalidade. Ela falou que não era verdade, que as rotações estavam a ser bem feitas. A coordenadora riu e voltou para o lugar do deboche. O jogo continuou, o jogo terminou. A coordenadora veio manter a sua ideia de que ela deixou passar faltas de rotação, de que fazia muitas expressões com a cara, de que fazia muitos movimentos corporais que não faziam parte da função. Era tudo tão fora da realidade para ela, habituada a gerir pessoas, a ensinar pessoas, a tratar bem pessoas. Não, não. Aquele lugar não era para ela. Ali não se ensinava nada que fosse bom. Ali ela estaria sempre errada. Agradeceu. Perguntou se tinha mais funções. Não tinha. Disse então que se ia embora. Despediu-se de todos dando “um adeus e muito obrigada” geral e saiu.

Veio uma senhora ter com ela dizendo que a coordenadora tinha dado um dinheiro para o almoço. Ela sabia que as arbitragens iam ser pagas mas na verdade pensou que seriam pagas com recibo, por transferência bancária. Como era no seu país e pensava ser em qualquer lugar do mundo. Não. Nada disso. Aquela mulher passou para a sua mão um papel amassado. Ela meteu no bolso a mão com aquilo e saiu. Quando chegou a casa tirou o papel amassado do bolso. Era uma nota de R$ 50,00. Uma manhã de bullying, uma nota de R$ 50,00 amassada no bolso e a sensação de ser indesejada, incompetente, desqualificada, faça o que fizer, diga o que disser, seja da forma que for. Não, este não é um bom lugar para mim.

Pensa diariamente o que deve fazer com isso. Como sempre aprendeu com seus pais, não quer ser igual, não quer virar aquilo. Ficou magoada mas segue a vida. Eles não a destroem. Ninguém pode ser capaz de a destruir. Nem a ela nem a ninguém.

Depois da glória talvez seja preciso conhecer o inferno. O desagradável jeito do ser humano que não te aceita. Que te fecha qualquer porta.

Ela sempre quis aprender tudo. Continua querendo aprender. Isto também é aprendizagem. Algo bom sairá desta experiência. Só tem esse jeito. E será esse o jeito.

E assim foi que o tempo seguiu e assim foi que a vida foi se ajeitando, à medida que ela foi continuando a aprender a mergulhar no que a apaixona.

Descobriu uma forma de continuar ligada ao que gosta, ao que sabe e a essa vontade de ajudar. Começou a fazer pequenos depoimentos na internet, no Instagram – chamados de Reels.

Umas vezes de 60 segundos, outras vezes de 3 minutos.

Algo que parece fácil, mas é difícil. Mais difícil ainda porque não lê nada. Escolhe um assunto e fala. Recusa-se a se preparar, a ficar artificial. Muito menos a ler. A vida é ao natural e ela sempre teve de ser capaz de falar ao vivo com alunos, com atletas, porque seria diferente agora?

Medo de crítica? De risos? Não deve ser tão desagradável como estar num país que não é o seu, sendo tratada como uma inútil e incompetente, nas suas costas, com risos e piadas em conjunto – pelos teus supostos pares.

Não, ela não tem medo das críticas, dos gozos, dos que apontam. Não, não tem. O que tem é medo de perder a vontade de aprender, de ter a paixão de saber sempre um pouco mais. Esse medo ela tem. E sabe que isso acontecerá, mas será a vida a decidir o momento, não um qualquer outro ser humano num qualquer outro lugar de poder, e ela, ou outra pessoa, num qualquer lugar de subordinada.

Sabe que tem de aprender sempre, mas sabe que nada sabe.

Ela e todos.

Ana Santos, professora, jornalista








 
 
 

Comentários


ESPERAMOS SEU CONTATO

+55 71 99960-2226

+55 71 99163-2226

portalbuglatino@gmail.com

  • Facebook - White Circle
  • YouTube - White Circle
  • Instagram - White Circle
  • TikTok

Seus detalhes foram enviados com sucesso!

bottom of page