“SEXTOU” A CHATICE
Queria escrever. Estava pronta e concentrada. Mas algum vizinho estava dando uma festa às duas da tarde de sexta. Parecia mentira. Com aquele pagode da mesmice, chato, alto, com o cantor berrando e fazendo mil voltinhas e gorjeios com a voz. Tantos, que a Whitney – que começou isso e era tão lindo, tão perfeito – deve estar se revirando na tumba... eram tantos ie, ie ie...uou, uou, uou que ela enfiou o fone no ouvido. Fincou, pregou o fone. Mas lá longe...
Lele, Lele...
Ai que ninguém merece isso, meu Deus... – pensou.
A pergunta que não queria calar era: por quê as pessoas realmente acreditam que se elas gostam de uma música, o mundo inteiro vai gostar também? Por quê essas bandas que aparecem aos cestos e centos fazem a mesma música com letras diferentes sempre? Por quê Tom Jobim não reencarna, gente? Se ainda dá pra pedir mais alguém, então ele que venha com Elis porque o Tom não cantava nada...
Sua cabeça voava por tempos onde as letras combinavam com as músicas, as pessoas entendiam o que elas queriam dizer - mesmo quando eram complexas, como Sabiá – quando as crianças assistiam Festivais da Canção, ao invés de mil franquias da mesma coisa em inglês, em espanhol, em português...
Agora o carro do ovo. Os sons se misturam. Ela começa a pensar que não era a melhor hora pra escrever... olha a tela do computador, põe as pernas em cima da mesa de trabalho, como estava acostumada e pensa de novo que as pessoas estavam vivendo pra si. O tempo em que minha mãe me perguntava se eu me lembrava que havia vizinhos, tinha virado os vizinhos esqueceram de mim.
Sextou a barulheira toda de uma vez.
- Ovos de galinha caipira! Ovos de galinha de quintal! Ie, ie, uo, uo, lelé, lelé...
- Que ó, que ó!
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Farei tudo”
Sábado. Ana acordou. São 5h. Ainda é noite e a cidade está muito silenciosa. Que hora boa para acordar e fazer todas as coisas que tem vontade. Acha que vai começar por limpar a casa, arrumar aquele armário que sempre fica para depois. Fecha os olhos, se aconchega um pouco mais no edredon e confirma o que tinha planejado/planeado, por ações. Levantar, começar a varrer o terraço, a garagem, subitamente está varrendo o telhado....ups, adormeceu... São 6h. Ainda é cedo, calma. Dá para fazer tudo o que planejou/ planeou e ainda sobra. Depois de limpar a casa e arrumar aquele armário, quer fazer compras, fazer comida para a semana inteira, lavar o carro, voar pelas nuvens...ups, adormeceu de novo. Já são 8h, começa a ser tempo de levantar se quer fazer tudo no sábado. Porém, como está tão quentinho na cama, pode levantar mais tarde e faz as tarefas no sábado e no domingo. Combinado! Vai dormir mais um pouco, o sono veio agora com mais força e depois, depois sim se levanta de vez e tudo começa: tudo aquilo que pensou e talvez ainda vá caminhar, depois vai ao cinema, depois vai voar de asa delta...ups, sonhando de novo. Desta vez a soneca foi funda. São 12h e nem tomou o café da manhã. Está a atrasar tudo o que pensou mas também trabalha tanto e nunca tem um dia em que pode gerir o trabalho caseiro e pessoal que aceita esta preguiça que colou, esta cama quentinha, este não ter prazos, estresse, gente lhe pedindo coisas, problemas para resolver, dinossauros para visitar...ups, lá foi ela de novo para o mundo dos sonhos... 14h, precisa de comer, precisa de ir no banheiro. Mas quer voltar para a cama. Explica ao universo que se vai levantar para ir no banheiro, para comer alguma coisa, mas que as tarefas se vão iniciar mais tarde e continuar no domingo. É responsável, cumpre sempre suas obrigações, mas ter um pouco de tempo para estar na cama, no quentinho, no silêncio, na paz, na preguiça, na verdade está a ser um pequeno milagre e decidiu aproveitar. E as horas passam, 16h, 18h, 20h, 22h, 0h...banheiro, alguma comida, dormiu, dormiu, sonhou, sonhou, planejou/planeou mais coisas ainda. A noite veio, a insônia também, pudera, dormiu num dia “mais do que nas semanas inteiras de trabalho”. Pela manhã de domingo está arrasada, de sono. Não descansou nada. Por isso, vai descansar pela manhã e depois de almoço vai resolver tudo que pensou...ou pelo menos vai fazer o principal, o obrigatório. Afinal a casa não está assim tão suja, afinal tem comida suficiente para a semana, tem refeições no freezer/congelador, o armário pode ser arrumado no final de semana seguinte ou nas férias...
- Pera aí...posso dormir na tarde de domingo também!
Domingo, 20h, dá um salto da cama. Esqueceu que tinha ficado de fazer uns relatórios para o chefe, que tinha ficado de fazer umas pesquisas para o trabalho que termina esta semana, tinha esquecido que iria preparar a reunião de segunda-feira, pelas 8h, aliás, se ofereceu para o fazer porque as colegas tinham filhos e problemas para resolver no final de semana e ela, ela estava livre e com tempo tranquilo para fazer tudo...
Ana Santos, professora, jornalista
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