
Conto “DEMOCRACIA, A DEUSA”
- Qual a diferença entre vingança e justiça? Perseguição política e aplicação da lei?
Ela olhou a tela do computador pela milésima vez e lá estava: o processo da aplicação da lei totalmente em curso, pela primeira vez como algo visível na sua vida.
Podia-se dizer que ela era meio velha. Sessenta e quatro e a caminho de mais. Ainda assim, nunca tinha visto um general pagar por qualquer crime – qualquer que fosse. E, não sabia bem o motivo, ela tinha um herói em especial da época da ditadura. Atualmente todos tinham o mesmo herói – Rubens Paiva. Engraçado porque o herói dela também tinha uma mãe excepcional como Eunice, mas que não era a Eunice – era Zuzu. Sobrenome amparado pelo céu, se chamava Angel, Zuzu Angel, estilista – numa época onde os estilistas brasileiros eram super badalados. Junto com Clodovil e Dener. Bem – isso faz tempo.
Poderia ficar ali lembrando o quanto gostava do jeito pop da Zuzu – só mais uma dela – amava que seus modelos fossem chamados de “seus angels”.
Mas o ponto principal de Zuzu, o que me fez nunca a esquecer, na verdade foi Stuart, que tinha como traço, ser fiel – uma qualidade, claro – você vai pensar. Mas não para os generais, não para a ditadura, não para seus torturadores – que tentaram lhe tirar nomes de parceiros que ele não deu e que, por isso, por eles, morreu. Não apenas torturado, vejam: teve sua boca colada ao escapamento de um carro e foi arrastado pelo estacionamento da Policia da Ditadura.
- Qual a diferença entre vingança e justiça? Perseguição política e aplicação da lei?
Pensava sempre que seus espíritos precisavam se reencontrar com a justiça dos homens e reavê-la. Quanto à justiça divina estava tranquila – os militares e policias do DOPS iriam pro fogo do inferno da perdição das almas, tinha certeza. Mas esses espíritos – tantos, tantos – queriam democracia apenas, uma coisa tão comum, que muitos acharam que não era mais motivo de fé absoluta, de entrega, hoje em dia – enquanto eles deram tudo de si, deram a vida pra devolvê-la ao Brasil.
- Qual a diferença entre vingança e justiça? Perseguição política e aplicação da lei?
Os fatos, pensou. Quem fingia não acreditar na eleição, mesmo diante de tantas provas em contrário? Quem plantou a dúvida, sem evidência nenhuma, apenas falando que não acreditava na eleição, na vacina, no fica em casa da Covid? Quem quis acreditar, mesmo não vendo nada, mesmo com todos dizendo que as urnas eram fieis ao nosso voto? Quem saiu de casa pra invadir, depredar, bater, machucar, jogar bomba, destruir, matar, sequestrar?
E o Stuart? Qual militar se lembra dos que foram mortos, se nunca nada aconteceu com seus crimes? E a Zuzu? E o Rubens, o Zé, o João, o Marighela? São centenas, são milhares...
Pela primeira vez via réus com divisas, com estrelas. Quatro.
- Quantos anos se passaram com a gente convivendo com as perdas? Quanto de esperança, de nacionalidade, de orgulho nós perdemos? Pra chegar ao ponto de não tomar vacina só porque alguém “mandou”? Quanto de personalidade nos roubaram? Quanto de alegria, de convívio com pessoas diferentes?
Baixinho assobiou o Hino Nacional – depredado também, junto com a camiseta da seleção – mas ainda vivo.
- Vamos nos recuperar com a justiça, a verdade e a volta dela, a deusa – a democracia!
- Ouviram do Ipiranga...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “A tempo"
Ana ultimamente pensa mais naquele par de idosos holandeses, estranhos e incríveis. A avisaram: a vida não é apenas juntar dinheiro para enriquecer, a vida é para viver. Ana sabia que isso era importante, mas viveu algumas décadas em que precisava aceitar todos os trabalhos para poder ter um local onde viver e um carro para trabalhar. Sem carro não conseguia trabalhos, sem trabalhos não conseguia ter o suficiente para viver. O tempo livre gastava em investimento – estudar mestrado, estudar doutorado, estudar para melhorar. Sem dar conta foi envelhecendo, se acomodando ao modo de vida dos que trabalhavam com ela. Era normal se queixarem que estavam sempre cansados, não sorrirem, justificarem o aumento de peso, a má alimentação, a falta de sonhos, o desejo de aposentadoria como algo maravilhoso. Ela foi entrando nesse ritmo, esquecendo Joe e Lory, suas palavras, seus avisos, aceitando aquele modo de gastar a vida. Foi ficando doente aqui, doente ali, mas sempre ia conseguindo se recuperar. Percebeu que aquela vida sem objetivo, sem eira nem beira a estava deixando doente muitas vezes. Mesmo assim, ainda não entendia os que aqueles idosos atletas lhe tinham dito com o maior carinho. Não, Joe, Ana não entendia a sua falta de ar, com essa asma em último grau. Essa sua determinação em caminhar pela vida fora. Não, Lory, Ana não entendia o que significava viver num corpo que já tinha tido 3 enormes falhas – 3 enfartes – e a ânsia de viver que te fazia caminhar debaixo daquele calor, perante aquelas montanhas. Para ela era tudo uma ligeira dor de cabeça, uma sinusite, uma crise de alergia, uma bolha no pé, os músculos doloridos de treinar muito. Até que ficou de cama por meses e meses, sentindo um desespero horroroso. Dependente, incapaz, com um futuro incerto. Parecia que tudo desabava de repente – de repente não era, mas ela achava que era. Começou a sentir-se perdida, arrependida de não ter dado mais valor às suas capacidades, às suas oportunidades. De repente, tudo tinha valor, tudo era tão precioso e ela não era mais capaz de poder aproveitar. “Porquê?”- perguntava-se Ana. Porque razão não deu valor ao que tinha, abandalhou, desperdiçou, destruiu, amassou seus sonhos, aceitando o pensamento de outros, ou talvez de uma sociedade que tenta convencer todos que está tudo bem? Porque aceitou tudo como adequado mesmo quando seu corpo a foi avisando que era preciso cuidar, mudar, recuar? Por que razão só agora se dispõe a cuidar, a fazer o que é certo para aproveitar a vida? Agora que não dá mais? Ana está perante dois caminhos. Um, lamentar-se e odiar tudo e todos por ter perdido tudo, culpando os outros pelas suas erradas escolhas. Ou, apesar de ter destruído sua vida e suas oportunidades, tentar deixar nos outros alguns avisos junto com alguma esperança – como Joe e Lory fizeram insistentemente com ela. Quem sabe alguém ouve o que ela não soube ouvir – a tempo.
Ana Santos, professora, jornalista
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