
Conto "MÃO NA MASSA!"
Seu apelido era 11 dedos. Era um ladrão meio pé de chinelo que amava seus pequenos furtos. Entrava na padaria e logo “segurava” uns caramelos no bolso; só “vendia” seus favores – nada de fazer de graça; conseguia tudo no grito, xingamento, grosseria. Por quê? Porque amava. Nada muito eloquente.
Todos os machistas o amavam. Ninguém sabia precisar se os não machistas conseguiam se aproximar, mas como na vida tudo era possível, ouvia-se que alguns gays se identificavam com a sua figura.
- Figurinha e bem difícil... – pensava ela...
No passado teve muita influência. Cargos, benesses. Os desvios invisíveis se avolumaram. Em toda parte, havia “uma mão a desviar fundos”.
O problema é que os pequenos desvios se somaram a coisas enormes, que envolviam milhões e muita gente. Por isso, se no passado era influente, no presente... bem... Como nos diz a vida, há gosto pra tudo e o diabo sabe fazer as panelas, mas não as tampas... O tempo deixou de ser aliado porque tudo se revelava através da passagem dos anos.
E o tempo, esse agente tão mágico, continuou a passar lentamente... E, de repente, sua enorme influência também começou a minguar. Seus crimes afloraram. O medo tomou conta de tudo e as explicações e justificativas estranhas também.
- Tudo isso é pra não verem que seus dedos são bem leves...
- Todos estão caindo na malha da justiça!
- Meu Deus! Seguramente ele não consegue se defender! Pois, se nem conseguiu negar!
Seus aliados erraram, confiaram demais e foram sendo presos. Um a um.
Sua vida virou um inferno. O medo lhe rondava os sonhos. Todos lhe diziam: foi ser ganancioso e meter a mão na massa assim! E agora?
Nem dormia mais. Vivia tremendo pelos cantos. Mas um dia, o sono o venceu e ele dormiu e sonhou. Sonhou que estava com Deus, nos jardins celestes, caminhando. Só que, de repente, começaram a surgir almas por todos os lados. Almas com falta de ar, pedindo oxigênio. Eram muitas – uma verdadeira legião. E cada vez que tentava pegar nas mãos de Deus, ele escorregava, caía.
Acordou pálido. Não tinha para onde ir, nem no céu...
- Vou pagar caro, vou pagar caro...
Ficou velho em poucos meses, mas o jardim de Deus sempre voltava ao seu sonho, sem pena, sem dó, sem compaixão.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “O cabo da internet”
Era para ser hoje. Acordei cedo, cheia de moral, fresca que nem uma alface. Meio litro de água no bucho. Banheiro. Banho. Café da manhã delicioso. O dia se desenrolando bem, o pensamento organizado.
Finalmente um dia inteiro para me dedicar à edição. Que beleza!
Para ter uma internet mais potente do que a internet do Wifi, tinha ligado um cabo ao Modem. O Modem está no consultório e como de tarde tem pacientes achei melhor tirar para não me esquecer e depois criar uma situação desagradável para quem utiliza o consultório. Antes de começar a trabalhar, resolvo dar uma vassourada ligeira na casa só para confirmar que está tudo bem e o telefone toca. Era uma senhora que me queria pedir umas informações. Coloquei o auricular no ouvido, celular no bolso e continuei a varrer. A meio da varridela, tirei o cabo do Modem, puxei-o para a sala do lado sem enrolar – algo que nunca faço – mas tinha de ser. Dali a uns minutos já estaria sem vassoura, sem estar ao telefone e daria para arrumar melhor.
Escuto o sino a tocar – alguém deve ter vindo trazer alguma encomenda. Ana foi atender e nunca mais vinha. Entretanto, surge na porta dizendo que tinha chegado o empregado da obra do telhado para finalmente corrigir os pontos que faltavam. Como eu é que tenho estado a tomar conta desse assunto – tomar nota dos pontos, acompanhar, subir no sótão – precisei “largar”tudo. Pedi desculpas à pessoa que estava comigo no celular e desliguei. Deixei a vassoura no meio da escada e subi.
Mostrar todos os pontos de novo, as telhas que precisam ser trocadas, etc. O homem começa a fazer seu trabalho. Como ele começou pelo sótão, eu aproveitei e fui terminar de varrer a escada. Sabia que ele ia ficar entretido alguns minutos sem precisar de mim. Termino de varrer a escada e quando estou a varrer o corredor – a meio – toca o sino de novo. Vou ver quem é – era o responsável da obra. Abri a porta, entrou, foi ter com o outro senhor no sótão. Eu fui voando terminar o corredor. Entretanto ouvi o responsável chamando. Parei de novo de varrer, subi as escadas e ele me pediu para abrir a porta porque queria ir buscar uns materiais ao carro. Abri, esperei, fechei. Ele subiu de novo ao sótão e eu voei para terminar o corredor. Terminei e subi para arrumar a vassoura. Não dava para continuar a varrer. O responsável chamou de novo porque queria ir buscar outros materiais ao carro. Volta a abrir, a esperar, a fechar. Em plena cidade de Salvador queria que deixasse a porta aberta para ele. Sim, eu faço isso já...
Resolvi começar a fazer o almoço e a todo o momento tinha de interromper para dar algum apoio aos dois homens. O responsável foi embora, o empregado almoçou e descansou enquanto terminei o almoço e almoçamos. Uma comida rápida, um almoço rápido. Ana começou a receber pacientes e eu fiquei dando apoio ao empregado da obra. Era preciso estar sempre a lembrar os pontos que faltavam, dar escada, dizer onde está isto e aquilo. Depois esteve a resolver os pontos da garagem, da varanda e eu fiquei por ali e aproveitei para arrumar coisas, para passar veneno de cupim em algumas madeiras, arrumar frascos, ferramentas.
17h o homem parou de trabalhar e marcou um outro dia para o que faltava fazer. Eu ainda fiquei a terminar de arrumar a garagem. Umas 18h fui tomar banho, lanchar e senti que meu corpo tinha desligado. Comecei a sentir-me cansada, muito cansada. Subir ao sótão, ficar lá a conferir o trabalho, ficar o dia todo em volta de pessoas para ter a certeza que trabalham e também para controlar o ambiente, é um massacre físico e emocional. Dirigi-me ao espaço onde está o computador de edição e tropeço numa coisa do chão. Ali, desde que o deixei – de manhã cedo - o cabo da internet todo desarrumado, estava aguardando por mim. No único dia da minha vida em que não o arrumei imediatamente, ele ficou me aguardando um dia inteiro. Arrumei o cabo, sentei no sofá e fiquei olhando o nada – esgotada.
É, era para ser hoje. Mas hoje só falta sobreviver até à hora de deitar.
Ana Santos, professora, jornalista
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