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2 Contos de Nordeste


Conto “QUE PETULÂNCIA É ESSA?”

Carioca da gema, nascida na Glória – essa era ela – não tinha nenhum problema em assumir quem era, suas escolhas, amigos, casamentos, nada. Tinha muitas profissões convergentes, que desaguavam em comunicação humana. Ela amava aquilo. Era divertido, criativo, generoso e sincero.

Há anos atrás havia morado no sul do Brasil e assumiu uma posição muito crítica quanto ao sentir-se dentro de uma caixa de costumes. Era chamada, por isso, de “brasileira” – sim porque no sul, a maioria, por ser descendente de algum imigrante europeu, se sentia europeu. Portanto “brasileira” era uma forma de menosprezo, de diminuição. E a história bizarra de que o sul deveria ser independente já existia. Ela sempre ria daquilo:

- Eu sou “brasileira” porque nasci numa Pátria chamada Brasil. Já você, se acha europeu, mas mora, vive, trabalha e vai morrer no mesmo lugar que eu. Quem é o degredado aqui, amiguinho? Quem é o iludido aqui? Pode ir embora! Qual é o seu País mesmo?

Eles espumavam.

Trinta anos depois, ela já morava na Bahia de meu Deus, nordeste do País – com muito orgulho e convicção de que aquelas lutas valiam à pena lutar. Que espantoso ver aquele papo rançoso, de novo! Esse povo não evolui nunca, não? – pensou.

Nordestino ignorante – disse o sábio político. Isso, diante de Castro Alves, Rui Barbosa, Jorge Amado, Dorival Caymmi, Gil, Caetano, Bethânia; diante do 2 de Julho e Guararapes – sim, porque as guerras de libertação desse País continente – diz a história - aconteceram aqui. Gerações e gerações de nordestinos: de Padre Cícero e irmã Dulce, ao OLODUM e o frevo, o Nordeste sustenta boa parte da riqueza cultural brasileira.

- Não gostou? Volta pra Europa! Vejam lá se os seus avós e os bisavós vão fazer uma grande festa! Vejam lá os empregos maravilhosos que eles vão arrumar! Os nativos estão aqui mesmo – mestiços das raças originais, batizados pelo trabalho, desde a escravatura. – ela rugia, pelo tamanho da injustiça, pelo fato de seu pai ser sergipano e de ela ter sangue nordestino fervente em 50% de si mesma.

Que espécie de rancor era aquele que negava reconhecer a virulência, a pestilência do bullying separatista? E para o nordestino falsamente embandeirado: que espécie de pessoa é você para aceitar, assimilar, sofrer o mesmo bullying que o nordeste inteiro, tentando mentir quem é, fingindo não ser nordestino, mestiço, filho de escravo, neto de indígena – brasileiro em todas as letras reais do sofrimento que constituiu o nosso povo e a nossa história? Como não ter esse orgulho impávido e a dadivosidade que nos caracteriza? – pensava.

Assistiu vários comentários na internet e ao final, só pensava no quanto aquelas pessoas eram ignorantes – elas, que não percebiam que aquela guerra de palavras ia apenas trazer à tona o fato de que o Brasil sempre foi muito mais do que o comentário raso de quem não pisa a história, não olha o Pelô e sente o vazio na boca do estômago dos castigos sofridos pela colonização; querendo ou não, todo o Brasil – norte, sul, sudeste e centro-oeste, incluídos e habitados pelos indígenas desde sempre – nasceu e foi colonizado por aqui, nessa terra de meu Deus, que sempre aceitou todos com o braços abertos, mas que soube combater os que tentaram roubar de nós a liberdade, a autonomia e está pronto pra luta de novo – dessa vez pela democracia – com o mesmo orgulho e altivez de sempre.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Chegar a casa”

Ana procura sua casa. Ana procura mas não encontra. Uma vida inteira. Uma vida inteira! Alguém saberá o que é isso? Procurar, achar que encontrou, mas perceber que se enganou de novo e de novo. Uma vez mais, e uma vez mais, e mais uma vez e a vida inteira! Não pode perder a esperança porque viver é ter esperança mas vai ficando mais desanimada, mais descrente, mais desiludida. Como afinal a vida não é como sempre desejou, como sempre aprendeu, como sempre ouviu os adultos falarem? Em quem confia de verdade e recorre para obter ajuda, apoio, conselhos? Afinal cada um dos adultos - família ou não - e todos seus jovens amigos falam e fazem coisas que parecem verdade, que eles dizem que são verdade, mas depois vem a vida e diz que não são. Percebe que os adultos também são frágeis, imaturos, infantis, amedrontados, inexperientes, mas onde a sua dor é mais funda, é quando percebe que são mentirosos, aldrabões, manipuladores, hipócritas, malvados, interesseiros, falsos, invejosos e não vê preocupações de cura em nenhum deles. Percebe também que muitas vezes quem está na cadeia não devia estar, quem lidera os países não devia, que quem é padre não devia, que quem é pai não devia, que quem transa com ela não devia, que quem lhe bate não devia, que quem a deixa passar fome não devia. Tanta coisa que não bate certo, tanta, tanta, e ela sem ter com quem falar, a quem agarrar a mão. Ninguém é confiável porque afinal todos veem que a vida está errada em muitas coisas mas nada fazem, lamentam muito e nada fazem, ou até sorriem de contentes comentando que foram espertos. Esperteza é uma das palavras que ela aprendeu definições diferentes. Pensa como é engraçado isso, já que aprendeu com os adultos, mas os mesmos adultos alteram as definições. Ou falam uma coisa e fazem outra, ou falam uma coisa hoje e outra amanhã, ou falam uma coisa a uns e outra coisa a outros. No meio de tanta gente e tão imensamente só, sem casa.

Questiona-se muitas vezes onde estará a sua casa, onde está esse lugar onde deseja um dia repousar sua alma. Todos lhe dizem onde está a sua casa mas ela percebe que eles estão mentindo, ou até, que não sabem mas fazem de conta que sabem. Percebe que nunca vão acreditar no que ela tem para dizer, no que ela vive, no que sofre. Não vale a pena falar, não é por aí.

Começa a entender que sua casa não é sua cama, seu teto, onde nada de bom lhe acontece. Sua casa afinal parece não ser material, talvez esteja em seu peito, na sua respiração, no seu estômago saciado, no seu corpo limpo e sem invasões, numa roupa limpa. Talvez esteja junto das pessoas que viram e sentiram o que ela já viu e sentiu. Uma busca difícil mas que pode fazer algum sentido já que ela vê tantos olhares parecidos com o seu mas não tem coragem de lhes perguntar, de abrir essa porta de horror em que vive e perceber quantas pessoas mais vivem o mesmo. Precisa de encontrar os seus “pares”, mas ao mesmo tempo não quer perceber nem aceitar que como ela existem milhões e milhões. Expressões como “desculpa”, “foi sem querer”, “parecia que querias”, “estavas a pedir”, “estavas a merecer”, “é para isso que serves”, “se falas mato-te”, “ninguém nunca vai acreditar nas tuas palavras”, “mulher é para abrir a perna que serve”, “se falas teus pais perdem o dinheiro que lhes dou”, “pensavas que eras importante?”, ....não, não pode ser sugada por esses tormentos. A esperança, a busca da sua casa. Onde está esse começo? Por onde pode começar? Será que é dia 30? Será?

Ana Santos, professora, jornalista

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