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2 Contos de dentro


Catherine Leroy 1944-2008

Conto “QUANDO VOCÊ É O INÍCIO, O FIM E O MEIO”

A notícia do mal estar daquele a quem adorava chamar de pai, não a alarmou tanto quanto o seguinte: suas sequelas, naquele momento, não tinham tratamento onde ele estava. Tempos de COVID – e assunto encerrado no hospital.

Ela via os esgares. Era impossível não vê-los. A respiração que era tamponada pela posição da língua, a dificuldade articulatória e o comprometimento nítido da mastigação. Não concordava muito com o discurso dos médicos, dada a sua prática de vida – era especialista exatamente naquilo. Por algum tempo, inclusive, poucos acreditavam no que falava: como duvidar da palavra do médico, meu Deus?

Caminhos e descaminhos: não era ético assumir o tratamento daquela pessoa e ainda por cima online. Por outro lado, não havia a quem pedir, a quem encaminhar, com quem discutir. E as sequelas não fugiriam – estavam todas ali, colocando sua vida em risco, numa brincadeira mortal com a ética.

Não se envolver, se neutralizar e fingir que não tinha olhos para o assunto, era possível – difícil, mas possível. Não se envolver, se neutralizar e invisibilizar seus sentimentos era difícil, doloroso, mas também possível. Como em tudo na sua vida, chorou, se desapegou e assumiu o risco.

Se impor, liderar, enfrenta-lo. Tudo foi feito. E todos os dias lá estavam o medo da pandemia e o medo de que não conseguisse as respostas de que precisava, até que músculos, nervos, tendões começaram a responder discreta e continuamente.

Um pouco de bom humor, histórias contadas de tal modo que a articulação fosse compreensível, autonomia para comer pastosos e antes que ela até confiasse, sólidos, já que a gula o venceu muitas vezes.

O gênio tormentoso, tempestades verbais de volta; hora de sair, também algo dolorosa, mas sobretudo, aliviada. A pesada rotina de exercícios diários tinha dado certo.

A fidelidade ao distanciamento ético fez-lhe perdas, mas os ganhos foram infinitamente maiores, já que mesmo à distância, usufruía de suas implicâncias...

- Onde está o princípio do agir? Quem o atrelou às regras, conhecia os caprichos da vida? Suspirou aliviada e afastou-se. Agora era brincar de viver e recuperar-se.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Eu e Eu”

Nunca tinha olhado para mim. No dia que me vi ao espelho não sabia que quem estava ali era eu. E à medida que me mexia, mais estranho era perceber que eu era aquela pessoa, com aqueles gestos, aquela aparência, aquele olhar. Eu sempre me tinha observado praticamente em metade de mim: os braços e mãos, o peito, a barriga, a cintura, as pernas, os pés. Talvez também meu grande nariz fosse meu conhecido já que uma enorme sombra me acompanhou quando tentava olhar algumas coisas mais de perto, abaixo dele.

Ali estava ela, quer dizer, ali estava eu então. Ali estava uma pessoa que eu nunca tinha visto e que era eu. Me deu vontade de lhe perguntar porque me olhava fixamente.

- Nunca viste?

- Não. É a primeira vez que te vejo.

- Sim, mas vais ficar a olhar para mim o dia todo?

- Vou, não posso? Tu és eu, eu sou tu, você é eu e eu sou você. Você não pode fugir, virar a cara, se eu não o fizer também.

- Af, mas tinha de me sair esta agora. Não me canses com tanta filosofia ou confusão de palavras.

- São palavras simples. Somos a mesma pessoa. Só vais deixar de me olhar quando eu e tu decidirmos simultaneamente deixar de olhar o espelho.

- Mas é isso que me está a aborrecer. Eu sempre me afasto, ou fico, quero ou não quero, sozinha, sem mais ninguém. E agora descubro em mim, eu e o oposto. Não gostei. Onde fica esta parte de mim, tu, nos dias em que sinto medo, já que tu deves ser a coragem? Não vale aparecer só quando te apetece.

- Eu estou sempre contigo. Tu é que não percebes. Assim como sem espelho só vês praticamente metade do teu corpo, mas o resto está aí, apesar de não a veres, também quando sentes medo a coragem está presente sem a veres.

- Legal isso. Talvez eu goste dessa explicação. Olha vou ter de ir. Bora as duas sairmos do espelho?

- Ok. Até à próxima. Não te esqueças que mesmo quando não me vês, eu estou contigo, afinal somos a mesma. Por isso, trata-me, trata-te bem.

- Combinado. Tchauzinho...fofura...

A vida é tão surpreendente. Acabei de me conhecer. Interessante. Mais interessante será que a partir de agora posso pedir duas pizzas, dois sorvetes, dois cafés, um para mim e outro para “moi même”. Mal vejo a hora de chegar a hora de almoço. Espero que eu, a outra, não seja esquisita com comida.

Ana Santos, professora, jornalista


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