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2 Contos de Busca

Conto “E O MUNDO CAIU”
A mulher não estava fazendo nada, propriamente. Estava ali, à frente da TV, como sempre; ora levantava os olhos para a imagem da tela, ora se voltava para o celular. Não tinha filhos, não tinha cachorro. Mas não estava só. Tinha alguém que amava e que estava logo ali ao lado.
Seus mundos dividiam muitas órbitas, assim como os planetas. Algumas eram muito próximas; outras eram distantes e ainda outras incompreensivelmente muito mais distantes. Esses pensamentos distraídos passeavam em sua mente, até que a TV lhe chamou a atenção. “Não usem máscara”! Ahn? Deve ser Fake News...
Mais um pensamento como habitante dos seus milhões de outros colegas-pensamento, pensou... Afinal, qual idiota absoluto falaria uma coisa dessas?
O mundo se fragmentou dentro de sua mente em milhões de pensamentos, de novo. Arroz doce é uma delícia, a Terra é redonda, vacinas previnem doenças, o vírus mata, acho que estou com fome de novo, a resistência do chuveiro está queimada... Um perfeito e completo idiota atrai outros? Curioso isso... Algo assim imantado a você ou uma coisa mais fluída?
E lá iam e vinham histórias, problemas e descobertas, noite adentro. De vez em quando lá vinha a notícia idiota de que alguém pode pensar que numa zona de guerra como o Brasil, onde meio milhão de pessoas morrerão até o final da semana que vem, cabem ideias, sugestões ou mesmo pensamentos de que “já, já poderemos abolir as máscaras”!
Será que não aparece uma mulher nessa órbita ordinária pra mostrar como o mundo ganha com suas ideias?
Ela olha por cima dos óculos e pensa de novo que tem fome. Pensa de novo nos refugiados abandonados pelo mundo, no seu amigo carteiro, na incompetência da política internacional em discutir e agir contra a pobreza. Olha a tela. Lá está o idiota de novo. Por quê ainda o filmam? Seu maior castigo era ser tratado como as crianças mal educadas. Ninguém te olha mais pelos minutos correspondentes à sua idade, ouviu? Ih... se jogou no chão. Ih, fez malcriação, ta batendo os pés, nossa que vexame, mãe... quem educou essa coisa? Tsc, Tsc, tsc...
A mulher, por dentro, pensava em virar uma super heroína, em desmascarar. Mas, como ele disse pra tirar a máscara, ela acaba sorrindo e aceitando que o maior castigo, a maior vingança é que ele não veja a nossa inteligência sorrindo de escárnio e desprezo, por baixo dela...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Onde será que está?”
Ana já deu a volta inteira à casa, mas não consegue encontrar o que procura. Que raiva! De novo? Toda a vida isto acontece. Algo que para ela é muito importante, que arruma num lugar muito seguro, secreto e que assim nunca vai perder. Só que depois nunca encontra. Afff...
Começa a duvidar de tudo. Se tem mesmo o que procura, se está na casa, etc. Que raiva...
Vamos lá. Primeiro, não perder a paciência. Não está maluca. O que procura existe. E está em casa. E está arrumado. Não se lembra é do local.
Começa a procurar pelos lugares normais de arrumar. Pelos lugares que deve estar. Pelos lugares que pode ter sido arrumado por outra pessoa. Pelos lugares que não deveria, mas talvez esteja ali. Pelos lugares que seria estranho estar ali. Pelos lugares inimagináveis. Nada. Não é possível.
Voltam as dúvidas. A desorientação. A irritação chega, poderosa. Chega uma pessoa, querida, que pergunta docemente: “já viste ali?” Ana respira, respira, respira e diz “sim, já vi. Obrigada.” A sensação de anormalidade começa a descer sobre si. Está a procurar a tarde toda, virou a casa ao contrário e chega uma pessoa e pergunta se procurou no lugar mais óbvio. A irritação aumentou mais um pouco. Ela não quer ir naquele lugar óbvio procurar de novo. Porque é óbvio que não está. É óbvio que foi olhar lá. Foi o primeiro lugar onde olhou. Puxa vida...
Horas no mesmo... Decide interromper de vez em quando o trabalho para procurar. Nos mesmos lugares de novo. Será que já viu ali? Sabe que já viu, mas sabe que não encontrou.
Depois de tanto tempo na procura lembra que pessoas importantes da sua vida lhe dizem sempre para olhar de formas diferentes para a vida.
Mas para procurar não existe uma forma diferente. Seria muito filosófico para uma busca tão mundana.
Seria?
O desespero é tanto que procura de novo, tentando procurar de “outra” forma. E nessa, inovação, vai ao lugar mais óbvio de novo. Olha e...não quer acreditar. O que procura, está lá. Ali pasmado, ali quieto desde o dia em que o colocou escondidinho, de uma forma diferente.
Agora lembra dessa coisa tão “bem feita” que fez. Tão diferente e bem feito que não se via. Suas formas, que o identificam enquanto objeto, estavam escondidas. Por isso, estava ali, mas não estava na posição igual à imagem que guardava na sua cabeça, dele, enquanto objeto. Caramba. Caramba.
Como tem estas ideias perfeitas e se enrola nelas depois? Tantas horas na desorientação. Que coisa mais louca. E, além disso, por baixo, estava outro objeto que já achava que tinha perdido. Como sempre aprendeu, quando vais à procura de uma coisa, na maior parte das vezes encontras outra que estava esquecida. E, se procuras da mesma forma, com o mesmo olhar, não encontras o que escondeste de forma diferente.
Ufa. Ufa. Ufa. Ficou aliviada mas sabe que breve, breve, lhe vai acontecer de novo...
Ana Santos, professora, jornalista