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2 Contos da Vida Ativa


Conto “VIDA LOUCA, VIDA”

Tinha que fazer tudo em casa e fazia. E ainda estudava, lia, falava com as amigas. Quando saía para a escola, a mãe sempre lhe pedia alguma coisinha. Pão, passar no mercado, entregar uma costura. Ela nem piscava. Engraçado como ter muita responsabilidade apenas enchia seus dias e sua vida de coisas interessantes, pessoas curiosas, estranhas, com tiques, gagueiras, feiuras e belezas.


Seu Cláudio era o cara mais fashion do mundo! Amava levar costuras na casa dele porque falavam de tendências, cores, desfiles. Foi com ele que aprendeu a falar de moda sem ter vergonha, mesmo sendo pobre. “Moda não tem nada a ver com grana!” – ele sempre lhe dizia isso. Aí sua mãe conheceu o vitrinista de Calvin Klein. Calvin Klein! Meu Deus, ele lhe ensinou tanto!


E lá ia ela de casa em casa, lavando banheiro, fazendo a comida, mercado, feira, padaria, escola, prova, leitura, livro, Calvin Klein, dormir, acordar cedo, banho, escola, dever de casa, “não, minha mãe!” – corria de um lado para o outro, parecendo o Coelho da Alice: “Ai, meus bigodes! É tarde, é tarde, é tarde!”.


O tempo passou e ela também. Passou pra moda. Universidade. Corria do mesmo jeito, só que agora tinha um foco, uma luz. Moda! Como a mãe costurava, ela sabia o que fazer e como fazer. Sucesso. Muito sucesso. Logo apareceu uma casa mais linda que ela não tinha mais tempo de limpar, um carro na porta porque ela não tinha mais tempo de correr de um lado ao outro, uma empregada, duas. E também, jantares, festas, bebidas. “Que status”!


Um dia, um suor além da medida, no outro uma palpitação, uma falta de ar. Pouca. Cansaço, apenas.


O fato é que ela parecia uma abelha rainha – sentada, fazendo croquis e croquis. Passou mal – hospital, medo, covid – será que ia pegar aquilo também? Sem visitas, sem amigos, sem festa, jantar, bebida, status, nada. Apenas ela, sua arritmia e seus pensamentos, seu arrependimento. “Tão nova e já tendo problema cardiorrespiratório, não dava”.


Saiu do hospital e quando chegou em casa, se olhou longamente no espelho do banheiro. Sua mãe ensaiava chorar e brigar com ela. “Respira!”. No dia seguinte, saiu cedo e olhou sua rua nova, lembrando da antiga. “Onde estou eu nessa rua?”. Olhou seu carro e pediu a bicicleta do vizinho emprestada. Uma voltinha no quarteirão e ela se sentiu feliz de novo.


E lá ia ela: bicicleta virou seu mantra pessoal, seu transporte, seu objeto de prazer. Sentava na bike e lembrava os banheiros cheirosos, depois de lavados, o cheirinho do almoço, da roupa limpa, o cheiro do sabonete de sua mãe.


Retomou a vida ao ar livre, perdeu dinheiro e ganhou prazer e vida. Boa troca. Vendeu o carro, alugou um apartamento mais perto do escritório e lá ia ela com seus croquis, desenhar, fazer moda e ser feliz. De um jeito mais simples, mais humano e mais feliz.


“E se precisa quase morrer pra aprender a viver? Pois, é...”


Vida louca. Tanto esforço pra ganhar dinheiro na vida. Ele comprou mordomias que quase acabaram com ela e agora ela mesma fazia tudo o que era pra si mesma com consciência, saúde e todo aquele trabalho lhe devolvia toda a sua saúde. De volta. Saúde.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Mudar ou Voltar”

Ana envelheceu um bocado. É final de tarde e acabou de chegar em casa. Teve mais uma consulta com o médico. Mais regras, mais cuidados. Ele a avisou mais uma vez que, se quiser viver com qualidade, precisa fazer tudo o que ele pediu.


Ela adora o seu médico. Ele é um fofo. Novo, todo certinho, todo informado. Quando as pessoas são jovens são tão certinhas, sabem tudo tão bem. Fazem tudo no lugar certo. Ela foi assim também e gosta de ver isso no seu Doutor querido. Lembra muito dela nova.


Quando está a trocar a roupa de sair pela roupa de andar em casa e a organizar os medicamentos sorri e sente vergonha ao mesmo tempo. Tudo o que o médico lhe disse ela sabe. Sabe muito bem. Sempre fez isso, em criança, em adolescente, em adulta jovem. Tem total consciência de que quando sua vida começou a melhorar financeiramente, tudo piorou. Começou a engordar. Ficou mais sedentária. Mais preguiçosa. Comprou carro. Andava menos. Estacionava sempre do lado do local onde ia. A cidade era perigosa e isso era importante. Mulher sozinha não podia dar folga em nada. Com isso, quase não caminhava. Seu trabalho era num prédio, no vigésimo andar. Elevador para subir e para descer. Como trabalhava longe de casa o dia inteiro, ia comendo pela rua, em restaurantes, em botecos e o que lhe apetecia. E a quantidade que lhe apetecia. Afinal, agora podia. Era dona de si, do seu dinheiro, do seu transporte.


Sem dar conta, perdeu a mão. Perdeu o equilíbrio. Perdeu-se. Com a falta de tempo deixou de ir a caminhadas, passeios, viagens com amigos, com família. Deixou de fazer atividades corporais. Arranjou uma empregada para cuidar da casa, do jardim, da roupa, das refeições. Sempre achou que essa era uma possibilidade apenas dos privilegiados, dos ricos, dos importantes. E, por isso, sentia-se importante. Sempre que podia falava que tinha uma pessoa que cuidava da casa. Falava da casa que ela comprou, do seu carro. Das noites e finais de semana sentada em frente ao computador, trabalhando imenso para o bem da humanidade. Das férias que não tinha porque sempre tinha ideias que poderiam resultar em mais um projeto de sucesso na empresa.


Quando a pressionavam, ia aos jantares, feijoadas e churrascos com amigos. Tardes na cabeleireira e depois um bom lanche com as amigas, onde não faltavam os bolos, os doces, os chocolates que amava. Quando ia para casa ainda levava um sorvete.


Sabia bem que todas essas inovações não eram boas, mas ia fazendo. Sossegavam sua alma. Sentia-se poderosa. Ficava satisfeita, feliz, vaidosa porque era o que aprendeu ser o máximo para um ser humano, mesmo sabendo que seu corpo não gostava. Mas seu corpo não se queixava e ela aproveitava. Sabia que um dia não daria mais para tanta loucura. Mas não queria pensar muito nisso. Quem sabe o corpo resistia a tudo.


Agora, percebe que seu corpo até aguentou muito. Talvez demais. Se seu corpito tivesse reclamado mais cedo quem sabe ela tinha mudado mais cedo. Agora é tarde para pensar em tudo isso. É culpada, assumiu a culpa e agora é hora de enfrentar o momento. É hora de mudar, de acordar.


Vai vender o carro ou só vai utilizar o carro para emergências e para lugares difíceis de encontrar transporte. Vai mudar de casa, para uma mais perto da natureza. Ou pode ficar naquela casa mas terá de a tornar mais ativa e menos sedentária. Terá de passar a tratar de tudo. Vai se proibir de trabalhar aos finais de semana e obrigar-se a ter férias – férias ativas. Voltar a ler. A caminhar. A conviver com os amigos sem a comida como objetivo. Dispensar a empregada. Voltar a cozinhar. Fazer a sua comida mesmo quando vai passar o dia fora. Comprar alimentos para fazer comidas antigas que já não come há muito tempo. Alimentos baratos, comidas “de pobre”. Lembranças profundas da sua vida de criança e das pessoas que a educaram. De repente, lembra de tantas coisas que deixou de fazer e que amava. De tantas coisas que deixou para fazer um dia... Ana sabe que esse dia é hoje ou nunca mais será...


Ana muda a vida. A vida segue.


Um dia uma das suas amigas liga:

“- Ana, vamos jogar na megasena? É jackpot!!! Imagina só...se ganharmos, vamos viver uma vida de luxo e finalmente vamos poder viver sem fazer nada.”

(...)

“- Como não queres? Ana, tu gosta de ser pobre? Que pessoa bizarra tu és. Todos procurando um dia ter condições para não fazer nada e tu contente por conseguir fazer tudo. Tu não estás bem. Olha, se eu ganhar não te vou dar nem um tostão.”

(...)

“- Também não queres? Não é possível...tu não existes...”


Ana sorri. Desliga a chamada e volta a lixar a porta do banheiro. Hoje ainda tem de lixar a porta toda, antes do banho, da sopita e de dormir mergulhada nos sonhos da vida. Amanhã tem muita coisa para fazer...

Ana Santos, professora, jornalista

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